Cinge-se a controvérsia em determinar se o prazo de caducidade - especificamente, o prazo de 2 anos estabelecido no art. 3º da Lei n. 4.132/1962 - aplica-se ao decreto expropriatório para fins de desapropriação voltada para titulação de terras às comunidades remanescentes de quilombos.
Nesse sentido, a análise sobre a aplicabilidade ou não de prazo de caducidade às desapropriações em benefício das comunidades quilombolas deve levar em consideração o tratamento constitucional diferenciado conferido ao processo de titulação de terras de ocupação tradicional e às especificidades desse tipo de desapropriação.
Com efeito, a Constituição Federal, no art. 68 do ADCT, assegura o direito das comunidades quilombolas à posse e à propriedade das terras que tradicionalmente ocupam, em razão de seus laços históricos e culturais com o território, de modo que o fundamento constitucional das desapropriações quilombolas difere-se do das desapropriações comuns reguladas no Brasil, seja pelo Decreto-Lei n. 3.365/1941, que trata das desapropriações por utilidade pública, seja pela Lei n. 4.132/1962, que se aplica a situações de interesse social para fins gerais.
Outra particularidade das desapropriações voltadas à titulação de terras para as comunidades quilombolas é o reforço do art. 216, § 1º, da Constituição Federal, que confere proteção ao patrimônio cultural brasileiro e reconhece o direito à propriedade como essencial para a preservação da identidade cultural quilombola.
Por sua vez, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, extraído do julgamento da ADI 3.239, é o de que o processo de desapropriação para titulação de terras às comunidades quilombolas possui um caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, transcendente aos interesses puramente econômicos ou de desenvolvimento, uma vez que envolve territórios utilizados para garantir a sobrevivência e a cultura de um modo de vida específico das comunidades.
Cabe destacar que os prazos de caducidade previstos para as desapropriações comuns visam evitar a indefinição jurídica e a sujeição da propriedade tipicamente privada ao poder de império do Estado por tempo indeterminado. Em outras palavras, a caducidade do decreto impede que o poder expropriatório fique indefinidamente pendente, em respeito aos direitos do proprietário e à estabilidade das relações jurídicas eminentemente patrimoniais.
Contudo, no contexto das comunidades quilombolas, o principal objetivo é a preservação do direito fundamental à identidade cultural e territorial, de forma que a aplicação de prazos que comprometam a eficácia desse direito fundamental, quando já identificado e reconhecido pelo próprio Estado, não se justifica, ainda mais à luz do entendimento do STF sobre o tema.
Seguindo o raciocínio até aqui delineado, entende-se que os prazos de caducidade, tal como o prazo estabelecido no art. 3º da Lei n. 4.132/1962, aplicável às desapropriações convencionais, não devem incidir nesse tipo especial de desapropriação em prol dos direitos quilombolas, dado o seu objetivo constitucional específico e a sua regência por lei especial em sentido material (Decreto 4.887/2003).
Com isso, os institutos jurídicos não previstos no corpo normativo do Decreto n. 4.889/2003 somente podem ser aplicados se compatíveis com a essência e a finalidade do contexto protetivo e afirmativo da política pública em prol das comunidades quilombolas.
O silêncio do Decreto n. 4.887/2003 sobre um prazo de caducidade não deve ser entendido como uma lacuna normativa a ser preenchida por outras normas, ao contrário, reflete uma escolha deliberada ao normatizar e tratar essa modalidade de desapropriação e encontra-se alinhado com a natureza especial do processo de identificação, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas, que envolve a ocupação tradicional e a proteção de um direito constitucional fundamental.
A análise do art. 13 do Decreto n. 4.887/2003 revela que, ao ingressar na fase de desapropriação das terras para titulação das comunidades quilombolas, o Poder Público já concluiu os procedimentos administrativos de identificação, reconhecimento e delimitação dessas terras, pois constituem procedimentos prévios que configuram o reconhecimento estatal da ocupação tradicional e do direito quilombola sobre o território específico.
A desapropriação, portanto, não se destina à declaração ou ao reconhecimento de direitos, uma vez que eles já foram previamente reconhecidos no curso do procedimento administrativo. Trata-se, assim, de um processo final e formal que visa a efetivação desse direito fundamental, possibilitando a transferência de titularidade das terras de forma definitiva às comunidades quilombolas e a justa indenização aos detentores do título de propriedade incidente sobre tais terras.
À luz desse raciocínio, não se vislumbra a compatibilidade entre o instituto da decadência/caducidade e as desapropriações para titulação de terras quilombolas. Embora o intérprete do direito possa se valer de mecanismos jurídicos de interpretação ou integração das normas, deve se ater aos institutos que preservem a integridade e a essência dessas normas e do sistema jurídico ao qual pertencem, sob pena de incorrer em total desvio de finalidade.
Dessa forma, o Decreto n. 4.887/2003 cumpre a função de regulamentar o processo de titulação das terras quilombolas, assegurando a proteção dos direitos constitucionais dessas comunidades sem a submissão a prazos de caducidade que comprometam a plena realização desses direitos, pois a especialidade normativa das desapropriações de terras quilombolas justifica o tratamento diferenciado, revelando-se incompatível com a fixação de prazo de caducidade ao ato administrativo que reconhece a propriedade como pertencente às comunidades quilombolas. Sendo assim, o prazo de caducidade de 2 anos previsto no art. 3º da Lei 4.132/1962 não se aplica às desapropriações voltadas à titulação de terras às comunidades quilombolas.