sexta-feira, 17 de outubro de 2025

"É possível a manutenção do pagamento de pensão alimentícia por prazo indeterminado, na hipótese em que o ex-marido, mesmo exonerado, optou voluntariamente por continuar realizando o pagamento de alimentos por duas décadas, em razão da configuração dos institutos da supressio para o alimentante, que deixou de exercer seu direito de cessar os pagamentos, e da surrectio para a alimentanda diante da expectativa de que o direito de exoneração dos alimentos não mais seria reivindicado pelo ex-cônjuge"

 


Processo

Processo em segredo de justiça, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 17/6/2025, DJEN 27/6/2025.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema
 

Ação de exoneração de alimentos. Alimentos entre ex-cônjuges. Pagamento de pensão alimentícia por mais de duas décadas após o termo final da obrigação. Liberalidade. Expectativa legítima de continuidade da prestação. Supressio configurada.

Destaque

É possível a manutenção do pagamento de pensão alimentícia por prazo indeterminado, na hipótese em que o ex-marido, mesmo exonerado, optou voluntariamente por continuar realizando o pagamento de alimentos por duas décadas, em razão da configuração dos institutos da supressio para o alimentanteque deixou de exercer seu direito de cessar os pagamentos, e da surrectio para a alimentanda diante da expectativa de que o direito de exoneração dos alimentos não mais seria reivindicado pelo ex-cônjuge.

    Informações do Inteiro Teor

    Cinge-se a controvérsia em decidir se o pagamento de pensão alimentícia pelo ex-marido, por mais de duas décadas após o termo final da obrigação, configura a incidência do instituto da supressio, fazendo nascer para a ex-esposa a expectativa legítima de continuidade da prestação, em homenagem à boa-fé objetiva.

    A confiança, no contexto das relações privadas, desempenha papel fundamental ao assegurar proteção qualificada ao comportamento humano, sendo expressão concreta da solidariedade social constitucionalmente albergada. Essa confiança impõe a todos o dever jurídico de não frustrar, injustificadamente, as legítimas expectativas de terceiros. No âmbito das relações familiares, a noção de confiança deve ser especialmente protegida, de forma que as condutas contrárias à confiança serão, em regra, também contrárias à boa-fé objetiva.

    A tutela da confiança assume relevância ética nas relações privadas ao proibir comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium) e ao reconhecer efeitos decorrentes da inércia prolongada (supressio) ou da prática constante (surrectio). Tais figuras jurídicas operam como mecanismos de estabilização das expectativas, impedindo mudanças abruptas de conduta que contrariem a confiança anteriormente depositada.

    Identifica-se a supressio como a perda de determinada faculdade jurídica em razão do não exercício prolongado desse direito, o que leva ao seu esvaziamento. Em contrapartida, a surrectio consiste no surgimento de uma vantagem para determinada pessoa, justamente porque a outra parte deixou de exercer o direito ao qual faria jus, criando, assim, a expectativa de que esse direito não mais seria reivindicado futuramente.

    supressio aproxima-se, sem dúvida, do venire contra factum proprium, pois ambas as figuras atuam como fatores de preservação da confiança alheia. Mas dele se diferencia primordialmente pois, enquanto no venire, a expectativa do outro decorre de uma conduta ativa anterior, que não pode ser desmentida posteriormente; na supressio, a expectativa nasce da omissão prolongada do titular do direito, cuja inércia, associada a elementos objetivos que indiquem o desuso, conduz à convicção de que tal direito não será mais exercido.

    Assim, a inércia prolongada do credor de alimentos em promover a execução da pensão em débito pode gerar, no devedor, a legítima expectativa de que a prestação não é mais necessária, conduzindo à estabilização da situação de inadimplemento. Em sentido inverso, o alimentante que, mesmo exonerado, opta voluntariamente por continuar realizando os pagamentos, conduz ao alimentando a expectativa de continuidade da prestação, a qual pode tornar-se juridicamente relevante, especialmente diante da reiterada e sistemática manifestação de vontade.

    A aplicação da boa-fé no âmbito do Direito de Família reforça a dimensão ética e funcional da confiança, reafirmando seu papel como vetor interpretativo e integrativo. A eventual violação de justa expectativa deverá ser verificada na situação em concreto, devendo o julgador buscar a melhor forma de concretização das expectativas e esperanças criadas no ambiente familiar.

    O caráter de transitoriedade dos alimentos entre ex-cônjuges parece traduzir o conteúdo da boa-fé objetiva, uma vez que deve a obrigação alimentar garantir o fornecimento de auxílio material ao cônjuge depreciado em razão de sua vulnerabilidade social e econômica, até que possa retomar sua autonomia financeira.

    Os alimentos transitórios não serão cabíveis, entretanto, quando as necessidades são permanentes, em decorrência da incapacidade perene do alimentando de promover seu próprio sustento.

    A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem admitido a perenidade da obrigação de prestar alimentos entre ex-cônjuges em situações excepcionais, como na impossibilidade prática de reinserção do alimentando no mercado de trabalho; em hipótese de idade avançada do alimentando; ou de condição de saúde fragilizada.

    Dessa forma, constatando-se, na espécie, a incapacidade laboral do alimentando, saúde fragilizada, idade avançada ou qualquer impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho, ou de adquirir autonomia financeira, a pensão alimentícia entre ex-cônjuges poderá ser fixada por prazo indeterminado.

    No caso, é incontroverso que as partes se encontram divorciadas há mais de 30 (trinta anos), tendo firmado acordo para pagamento de pensão alimentícia pelo ex-marido à ex-esposa, correspondente a 5% dos seus rendimentos líquidos, além de pagamento de plano de saúde, pelo prazo de um ano. Referido acordo fora homologado judicialmente em 1993.

    Dois anos depois, as partes peticionaram nos autos da ação de divórcio requerendo a alteração do acordo, para que o pagamento da pensão alimentícia fosse prorrogado por prazo indeterminado. Embora não tenha o juízo conhecido do pedido, em razão da necessidade de ajuizamento de ação própria, o ex-marido permaneceu alcançando a pensão alimentícia à ex-esposa por mais de 25 (vinte e cinco) anos, até o ajuizamento da ação de exoneração, em julho de 2018.

    O fato de a ex-esposa ter recebido pensão alimentícia por mais de 25 (vinte e cinco) anos, no entanto, não demonstra sua inércia em retomar a independência financeira. Do contrário, a inércia do ex-marido em permanecer realizando os pagamentos mensais acordados por longo período, mesmo que exonerado, provocou na alimentanda a expectativa de que o direito de exoneração não seria mais por ele exercida.

    Portanto, evidencia-se, da conduta do alimentante, o instituto da supressio, visto que deixou de exercer seu direito de cessar o pagamento dos alimentos por mais de duas décadas, conduzindo à estabilização da situação de fato. Lado outro, surge para a alimentanda a surrectio, diante da expectativa de que o direito de exoneração dos alimentos não mais seria reivindicado pelo ex-marido.

    Com efeito, o alimentante que, mesmo exonerado, opta voluntariamente por continuar realizando os pagamentos, conduz ao alimentando a expectativa de continuidade da prestação, a qual pode tornar-se juridicamente relevante, especialmente diante da reiterada e sistemática manifestação de vontade.

    Some-se a isso o fato de que a ex-esposa teve de abdicar de seu trabalho em razão de mudança da família para a cidade de Petrópolis, em função do emprego do ex-marido. A realidade vivenciada pelo casal ao tempo da constância da sociedade conjugal deve ser considerada quando da fixação da pensão alimentícia.

    Ademais, tendo em vista que a alimentanda é pessoa idosa, possui doença grave e se encontra impossibilitada de se reinserir no mercado de trabalho; e o alimentante aufere renda suficiente para permanecer cumprindo a obrigação constituída; deve-se manter o pagamento da pensão alimentícia por prazo indeterminado.

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