sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

"É passível a imputação das obrigações previstas no art. 19, II, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ao agente de tratamento de dados, na ocasião de vazamento de dados pessoais não sensíveis do titular, decorrente de atividade alegadamente ilícita (ataque hacker)."

 


Processo

REsp 2.147.374-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 3/12/2024, DJEN 6/12/2024.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema
Paz, Justiça e Instituições Eficazes

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Direito à privacidade, à liberdade e à autodeterminação informativa. Agente de tratamento. Vazamento de dados não sensíveis do titular. Incidente de segurança. Ataque hacker. Responsabilidade exclusiva de terceiro. Não comprovada. Responsabilidade civil proativa. Expectativa de legítima proteção. Compliance e regulação de risco da atividade. Direitos do titular. Concretização. Aplicabilidade.

Destaque

É passível a imputação das obrigações previstas no art. 19, II, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ao agente de tratamento de dados, na ocasião de vazamento de dados pessoais não sensíveis do titular, decorrente de atividade alegadamente ilícita (ataque hacker).

Informações do Inteiro Teor

A controvérsia jurídica consiste em definir se o vazamento de dados pessoais não sensíveis do titular, decorrente de atividade alegadamente ilícita (ataque hacker), é passível de imputar ao agente de tratamento de dados as obrigações previstas no art. 19, II, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ou se o fato de tal vazamento ter decorrido de atividade ilícita seria uma excludente de responsabilidade, prevista no art. 43, III (culpa exclusiva de terceiro).

É importante recapitular que, ao inscrever a proteção e o tratamento de dados pessoais no rol dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal (art. 5º, LXXIX), a Emenda Constitucional n. 115/2022 inaugurou um novo capítulo no ordenamento jurídico brasileiro no que tange aos direitos de personalidade, à liberdade e à autodeterminação informativa.

Nesse sentido, as empresas que se enquadram na categoria dos agentes de tratamento têm a obrigação legal de tomar todas as medidas de segurança esperadas pelo titular dos dados para que suas informações sejam protegidas, e seus sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem estar estruturados de forma a atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança e aos princípios gerais previstos na LGPD e às demais normas regulamentares.

Ademais, compliance de dados é o esforço de conformidade e de aplicação da LGPD nas atividades das empresas que lidam com tratamento de dados. Referido instrumento assume importância central ao induzir não apenas à obediência ao direito, mas também à comprovação da efetividade dos programas de conformidade.

Logo, o tratamento de dados pessoais configura-se como irregular quando deixa de fornecer a segurança que o titular dele poderia esperar ("expectativa de legítima proteção"), consideradas as circunstâncias relevantes, entre as quais as técnicas de tratamento de dados pessoais disponíveis à época em que foi for realizado (art. 44, III, da LGPD).

No caso de a empresa de tratamento não provar que determinado vazamento dos dados tenha ocorrido exclusivamente em razão de incidente de segurança (ataque hacker), é impossível aplicar em seu favor a excludente de responsabilidade do art. 43, III, da LGPD.

Assim, é correta a conclusão de concretizar os direitos do titular dos dados ao condenar a empresa responsável pelo tratamento de dados na obrigação de apresentar informação das entidades públicas e privadas com as quais realizou o uso compartilhado dos dados da recorrida (art. 18, VII, da LGPD) e a fornecer declaração completa que indique a origem dos dados, a inexistência de registro, os critérios utilizados e a finalidade do tratamento, bem como a cópia exata de todos os dados referentes ao titular constantes em seus bancos de dados (art. 19, II, da LGPD).

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

"O valor nominal, constante de escritura pública, não é suficiente, por si só, para quantificar o valor do bem herdado, no caso de transferência de título de crédito por sucessão"

 


Processo

REsp 2.168.268-SC, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 3/12/2024, DJEN 6/12/2024.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema
Paz, Justiça e Instituições Eficazes

Falecimento do devedor originário. Sucessão. Cálculo do valor do patrimônio transferido. Direitos creditórios. Aplicação do valor real.

Destaque

O valor nominal, constante de escritura pública, não é suficiente, por si só, para quantificar o valor do bem herdado, no caso de transferência de título de crédito por sucessão.

Informações do Inteiro Teor

A controvérsia resume-se em definir se o valor nominal de uma nota promissória, registrado em uma escritura pública de inventário e partilha, deve ser obrigatoriamente utilizado para calcular o valor do patrimônio transferido por herança e, consequentemente, estabelecer o alcance das obrigações sucessórias.

A abertura da sucessão transmite, de forma automática (princípio da saisine), a propriedade de todo o patrimônio dos herdeiros e legatários, nos termos 1.784 do Código Civil, englobando tanto os direitos e créditos como as obrigações e dívidas existente à data do óbito.

Após concluída a partilha, cada herdeiro responde proporcionalmente à parte herdada que lhe coube até o limite do acréscimo patrimonial dela decorrente.

A determinação das forças da herança, em sua extensão objetiva, deve por em relevo o sentido econômico do acréscimo patrimonial, devendo seu real valor ser mensurado conforme a natureza do bem jurídico herdado.

A nota promissória, enquanto título de crédito cambial, é bem móvel que materializa direito literal, autônomo e abstrato, destinado a facilitar a circulação econômica de crédito, reduzindo seus riscos jurídicos e econômicos ao afastar a possibilidade de oposição de exceções pessoais contra endossatários.

Nesse sentido, a avaliação econômica para determinar o real valor de mercado dos títulos e do próprio crédito deve levar em consideração aspectos relacionados aos riscos de crédito (inadimplência e mora), além do tempo de antecipação da disponibilidade financeira e da chance de recuperação dos créditos em mora, motivo pelo qual o valor nominal constante de escritura pública, por si só, não é suficiente para quantificar o valor do bem herdado.

Assim, essa quantificação do valor real do título, ainda que não seja simples, especialmente para aqueles vencidos e não pagos, é imprescindível e deve anteceder à eventual penhora de valores pessoais dos herdeiros, concretizando a limitação de sua responsabilidade pessoal.

No caso, o emissor da nota promissória herdada encontra-se submetido a processo falimentar, de modo que a eventual satisfação do título deverá se dar no âmbito daquele juízo universal, obedecidas as regras concursais, fazendo jus o credor do autor da herança ao recebimento de rateios com prioridade sobre os herdeiros.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

"A propositura da ação revisional pelo devedor interrompe o prazo prescricional para o ajuizamento de execução pelo credor"

 


Processo

AgInt no AREsp 2.396.880-SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 18/11/2024, DJe 22/11/2024.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Ação de execução. Prescrição. Propositura de ação revisional pelo devedor. Interrupção do prazo prescricional.

Destaque

A propositura da ação revisional pelo devedor interrompe o prazo prescricional para o ajuizamento de execução pelo credor.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia em saber se o ajuizamento de ação revisional pelo devedor interrompe o prazo prescricional para o ajuizamento de execução.

A despeito de existirem precedentes mais remotos, inclusive da Quarta Turma, posicionando-se de maneira contrária à interrupção do prazo prescrional na hipótese, é certo que o entendimento atualmente aplicado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a propositura da ação revisional pelo devedor interrompe o prazo prescricional para o ajuizamento de execução, pois "a quebra da inércia do credor é caracterizada não só pela ação executiva, mas por qualquer outro meio que evidencie a defesa do crédito representado pelo título executivo" (REsp n. 1.956.817/MS, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 17/6/2022).

Isso se justifica porque é entendimento do STJ que a manifestação do credor, de forma defensiva, nas ações impugnativas promovidas pelo devedor, afasta a sua inércia no recebimento do crédito, sendo apta a evidenciar que o devedor tinha inequívoca ciência do interesse do credor na perseguição do crédito.

No caso, o ajuizamento de ação revisional implicou o reconhecimento do direito afeto ao crédito buscado pela parte, pois, partindo-se da premissa de que a relação jurídica discutida era válida, o devedor pretendeu discutir a exigibilidade do título, seja por aventada abusividade de cláusulas ou eventual excesso na cobrança de valores.

A circunstância de ter a insurgente apresentado defesa nos autos da ação revisional, a fim de que prevalecesse a exigibilidade do título e, consequentemente, do crédito discutido afasta a sua inércia, sendo absolutamente desimportante a tese apontada de que a notificação manejada anteriormente à data da ação revisional seria bastante para estabelecer que o termo inicial não se contaria da data da última parcela, pois ante o ajuizamento da revisional, a defesa apresentada pela parte adversa (credora) demonstra a sua intenção em perceber o que lhe é devido.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

"É inconstitucional — por usurpar a competência privativa da União para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional (CF/1988, art. 22, XXIV) — lei municipal que proíbe o uso da denominada linguagem neutra na grade curricular e no material didático das suas instituições de ensino públicas ou privadas"

 


DIREITO CONSTITUCIONAL – REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS; DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL; LINGUAGEM NEUTRA

 

Proibição do uso e do ensino de linguagem neutra em instituições municipais de ensino públicas e privadaADPF 1.165/MG 

 

Resumo:

            É inconstitucional — por usurpar a competência privativa da União para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional (CF/1988, art. 22, XXIV) — lei municipal que proíbe o uso da denominada linguagem neutra na grade curricular e no material didático das suas instituições de ensino públicas ou privadas.

A lei municipal impugnada, a pretexto de regulamentar matéria de interesse local, interveio de forma indevida no currículo pedagógico ministrado por instituições de ensino vinculadas ao Sistema Nacional de Educação previsto na Lei nº 13.005/2014 e submetidas à disciplina da Lei nº 9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”). Nesse contexto, o legislador municipal criou norma específica e em descompasso com a norma nacional (1), alterando o modo de ensino do idioma oficial do País no seu município.

Ademais, conforme a jurisprudência desta Corte (2), a proibição do uso da denominada linguagem neutra desatende: (i) a garantia da liberdade de expressão, manifestada pela proibição da censura (CF/1988, art. 5º, IX); (ii) a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF/1988, art. 3º, IV); e (iii) o princípio da isonomia (CF/1988, art. 5º, caput), pelo qual se estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Com base nesses entendimentos, o Plenário, por unanimidade, converteu o exame da medida cautelar em julgamento de mérito para conhecer parcialmente da arguição e, nessa extensão, julgá-la procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 13.904/2022 do Município de Uberlândia/MG (3).

 

(1) Precedentes citados: ADPF 1.155 MC-RefADPF 1.159 MC-RefADI 7.644 MC-RefADPF 1.150 MC-RefADPF 1.163 MC-Ref e ADI 7.019.

(2) Precedentes citados: ADPF 457ADPF 526ADPF 460ADPF 467 e ADPF 461.

(3) Lei nº 13.904/2022 do Município de Uberlândia/MG: “Art. 1º Fica vedado a linguagem neutra e o dialeto não binário, nas escolas, bem como em todos os documentos oficiais dos entes municipais, editais de concursos públicos, ações culturais, esportivas, sociais ou publicitárias. Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

 

ADPF 1.165/MG, relatora Ministra Cármen Lúcia, julgamento virtual finalizado em 03.02.2025 (segunda-feira), às 23:59

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

"Admite-se a revisão da taxa de juros remuneratórios excepcionalmente, quando ficar caracterizada a relação de consumo e a abusividade for devidamente demonstrada diante das peculiaridades do caso concreto"

 


Processo

AgInt no AREsp 2.608.935-RS, Rel. Ministtro Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 4/11/2024, DJe 7/11/2024.

Ramo do Direito

DIREITO BANCÁRIO

Tema

Juros remuneratórios. Limitação. Abusividade da taxa contratada. Necessidade de demonstração. Peculiaridades do caso concreto.

Destaque

Admite-se a revisão da taxa de juros remuneratórios excepcionalmente, quando ficar caracterizada a relação de consumo e a abusividade for devidamente demonstrada diante das peculiaridades do caso concreto.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a analisar a configuração ou não da excepcionalidade apta a autorizar a revisão de contratos bancários no tocante à taxa de juros remuneratórios.

Acerca do tema, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça - STJ possui entendimento consolidado no Recurso Especial 1.061.530/RS, processado segundo o rito dos repetitivos, no sentido de que as instituições financeiras não se sujeitam à limitação dos juros remuneratórios estipulados na Lei de Usura, em consonância com a Súmula n. 596/STF; de que aos contratos de mútuo bancário não se aplicam as disposições do art. 591 c/c o art. 406, ambos do Código Civil de 2002, salvo nas hipóteses previstas em legislação específica; e de que a estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade, nos termos da Súmula n. 382/STJ, impondo-se para a redução das taxas de juros a comprovação da onerosidade excessiva - capaz de colocar o consumidor em desvantagem exagerada - em cada caso concreto, tendo como um dos parâmetros a taxa média de mercado para as operações equivalentes.

O atual entendimento firmado pela jurisprudência deste Tribunal Superior é no sentido de que é insuficiente para a decretação da abusividade da taxa contratada: (a) a menção genérica às "circunstâncias da causa" ou outra expressão equivalente; (b) o simples cotejo entre a taxa de juros prevista no contrato e a média de mercado divulgada pelo BACEN e (c) a aplicação de algum limite adotado, aprioristicamente, pelo próprio Tribunal estadual (REsp 2.009.614/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 30/9/2022).

No caso em discussão, o Tribunal de origem, considerando as peculiaridades do caso concreto, entendeu pela abusividade dos juros nos diversos contratos firmados entre as partes, em razão da comparação entre a taxa média de mercado e a taxa contratada (50% acima da média), bem como por considerar que a modalidade de pagamento entabulada pelas partes (desconto em conta corrente) apresenta garantia de satisfação do débito, reduz o risco de inadimplemento, além do que não houve demonstração por parte da instituição financeira dos eventuais riscos da operação de crédito ou do custo da captação dos recursos, comparado ao de outras operações disponíveis no mercado.

Assim, adotando a jurisprudência do STJ, a decisão na origem concluiu pela abusividade dos juros remuneratórios previstos contratualmente, em análise das peculiaridades do caso concreto, razão pela qual os limitou à taxa média de mercado estabelecida pelo Banco Central do Brasil.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

"A falta de peças de reposição de veículo adquirido zero quilômetro, lançado há pouco tempo no mercado nacional, caracteriza vício do produto, ensejando para o consumidor as opções de substituição do produto, restituição da quantia paga ou abatimento proporcional do preço"

 


Processo

REsp 2.149.058-SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 10/12/2024, DJEN 18/12/2024.

Ramo do Direito

DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema

Defeito da ignição de veículo automotor. Bem de consumo durável ainda em comercialização. Peça de reposição não disponibilizada ao consumidor. Configuração de vício do produto. Incidência do art. 18, § 1º, do CDC. Possibilidade de substituição do produto, restituição da quantia paga ou abatimento proporcional do preço.

Destaque

A falta de peças de reposição de veículo adquirido zero quilômetro, lançado há pouco tempo no mercado nacional, caracteriza vício do produto, ensejando para o consumidor as opções de substituição do produto, restituição da quantia paga ou abatimento proporcional do preço.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia quanto à possibilidade de desfazimento do contrato de compra e venda de veículo zero quilômetro pelo fato de o fabricante não ter disponibilizado peças necessárias ao reparo do bem durante longo período.

Nos termos do art. 18 do CDC, será possível falar em vício do produto sempre que verificada alguma desconformidade de qualidade ou quantidade capaz de tornar o bem impróprio ou inadequado para o fim a que se destina.

O regime da responsabilidade dos fornecedores por vícios de produtos decorre da violação a um dever de adequação, assim entendida como a aptidão do produto (ou do serviço) para servir, para ser útil ao uso que legitimamente dele se espera. Referida inadequação ou vício de qualidade, surge de ordinário com o próprio bem. Decorre, normalmente, de uma falha de projeto, de fabricação ou de montagem. Não se afasta, porém, a possibilidade de que essa inadequação surja apenas momento posterior, depois da comercialização do bem, na fase de pós venda.

Isso se mostra claro no mercado de automóveis, em que os fornecedores têm o dever de viabilizar o funcionamento do bem mesmo após a sua comercialização, garantido peças de reposição. Ainda que o automóvel adquirido não contivesse nenhum vício de projeto ou fabricação, apresentando a qualidade adequada no momento da venda ao consumidor, deve ser considerado viciado se não dispuser de peças de reposição para eventual reparo em caso de avaria. Isso porque a falta de peças para reposição impede o seu uso regular e frustra a expectativa legítima de utilização do bem.

O consumidor que adquire veículo zero quilômetro, lançado há pouco tempo no mercado nacional, tem a legítima expectativa de encontrar peças para reposição capazes de garantir o conserto em caso de avaria. Ninguém compra um carro para usá-lo apenas até que apresente algum defeito. Ao contrário, é prática consagrada no mercado de consumo, que esse tipo de bem possa ser reparado várias e várias vezes, sempre que necessário, durante um tempo razoável.

O art. 32 do CDC, aliás, anuncia, expressamente que o oferecimento de peças de reposição integra a própria qualidade do produto oferecido no mercado de consumo.

Assim, a falta de peças de reposição no seguimento de veículos automotores caracteriza, por isso, verdadeiro vício do produto, ensejando para o consumidor as opções de substituição do produto, restituição da quantia paga ou abatimento proporcional do preço, nos termos do art. 18, § 1º, do CDC.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

"A anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito que antecede a inscrição legítima caracteriza dano moral in re ipsa"

 


Processo

REsp 2.160.941-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 5/11/2024, DJe 8/11/2024.

Ramo do Direito

DIREITO DO CONSUMIDOR

Tema

Consumidor. Cadastro de proteção ao crédito. Inscrição irregular. Dano moral in re ipsa. Existência de inscrição regular anterior. Não caracterização de dano moral. Inscrição regular posterior. Dano moral configurado.

Destaque

A anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito que antecede a inscrição legítima caracteriza dano moral in re ipsa.

Informações do Inteiro Teor

O propósito recursal consiste em definir se caracteriza dano moral a irregular anotação em cadastro de proteção ao crédito quando existente legítima inscrição posterior.

O Direito do Consumidor, como ramo especial do Direito, possui autonomia e lógica de funcionamento próprias, notadamente por regular relações jurídicas especiais compostas por um sujeito em situação de vulnerabilidade. Toda legislação dedicada à tutela do consumidor tem a mesma finalidade: reequilibrar a relação entre consumidores e fornecedores, reforçando a posição da parte vulnerável e, quando necessário, impondo restrições a certas práticas comerciais.

Esta Corte Superior perfilha o entendimento de que a inscrição indevida do nome do consumidor em cadastro de proteção ao crédito caracteriza dano moral in re ipsa, salvo quando preexistente legítima inscrição.

Na espécie, examina-se hipótese em que a inscrição legítima não é preexistente, mas sim posterior à anotação irregular de que se está a tratar, o que afasta a incidência da Súmula 385/STJ.

Deve-se examinar a situação do consumidor no exato momento da inscrição irregular. Se, neste instante, já havia anotação legítima anterior, não pode o consumidor alegar que teve sua dignidade, honra e respeito violados, pois devedor já era. Por outro lado, se, no momento da inscrição irregular, não havia qualquer anotação legítima anterior, inquestionavelmente estará caracterizado o dano moral in re ipsa, nos termos da jurisprudência desta Corte, sendo irrelevante o fato de existirem anotações legítimas em momento posterior.

A irregular anotação em cadastro de proteção ao crédito quando existente legítima inscrição posterior caracteriza dano moral in re ipsa.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

“1. A pretensão indenizatória por danos materiais em transporte aéreo internacional está sujeita aos limites previstos em normas e tratados internacionais firmados pelo Brasil, em especial as Convenções de Varsóvia e de Montreal; 2. É infraconstitucional e fática a controvérsia sobre o afastamento da limitação à pretensão indenizatória quando a transportadora tem conhecimento do valor da carga ou age com dolo ou culpa grave”



Responsabilidade por danos materiais em transporte aéreo internacional de carga - RE 1.520.841/SP (Tema 1.366 RG)

 

Tese fixada:

 “1. A pretensão indenizatória por danos materiais em transporte aéreo internacional está sujeita aos limites previstos em normas e tratados internacionais firmados pelo Brasil, em especial as Convenções de Varsóvia e de Montreal; 2. É infraconstitucional e fática a controvérsia sobre o afastamento da limitação à pretensão indenizatória quando a transportadora tem conhecimento do valor da carga ou age com dolo ou culpa grave”.

 

Resumo:

As Convenções de Varsóvia e Montreal são aplicadas às hipóteses de danos materiais decorrentes de contrato de transporte aéreo internacional de cargas e mercadorias.

O artigo 178 da Constituição Federal, ao dispor sobre a ordenação do transporte internacional, determina hierarquia específica aos tratados, acordos e convenções internacionais dos quais o Brasil seja signatário (1).

Nesse contexto, a pretensão de indenização por danos materiais em transporte aéreo internacional de pessoas, bagagens, cargas e mercadorias sujeita-se aos limites previstos em normas e tratados internacionais firmados pelo Brasil — notadamente as Convenções de Varsóvia e de Montreal —, na medida em que prevalecem em relação ao Código Civil e ao Código de Defesa do Consumidor.

Por outro lado, a discussão a respeito de eventual afastamento da limitação à pretensão indenizatória quando a transportadora tem conhecimento do valor da carga ou quando ela age com dolo ou culpa grave pressupõe o revolvimento do acervo fático-probatório, o que é inviável no âmbito do recurso extraordinário.

            Na espécie, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo afirmou a prevalência de normas internacionais com a finalidade de limitar a indenização por dano material em transporte aéreo internacional de carga e concluiu pela incidência do art. 22.3 da Convenção de Montreal.

Com base nesses entendimentos, o Plenário, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada (Tema 1.366 da repercussão geral), bem como (i) reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria (2) para conhecer em parte do recurso extraordinário e, nessa extensão, negar-lhe provimento; e (ii) fixou a tese anteriormente citada.

 

(1) CF/1988: “Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.”

(2) Precedentes citados: RE 636.331 (Tema 210 RG), ARE 1.372.360 ED-AgR-EDv-AgRRE 1.447.140 AgRARE 1.404.932 AgR-ED e RE 1.499.859 AgR.

 

RE 1.520.841/SP, relator Ministro Presidente, julgamento finalizado no Plenário Virtual em 03.02.2025 (segunda-feira)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

"O reconhecimento da proteção do bem de família em relação à meação da esposa, que sequer é devedora na ação principal, se estende à totalidade do bem, visto que objetiva resguardar a família contra o desabrigo e não apenas prevenir o perdimento de bens da meeira"

 


Processo

EDcl no AgInt no AREsp 2.244.832-SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 23/9/2024, DJe 1º/10/2024.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Bem de família. Impenhorabilidade. Reconhecimento. Imóvel indivisível. Extensão. Totalidade do bem.

Destaque

O reconhecimento da proteção do bem de família em relação à meação da esposa, que sequer é devedora na ação principal, se estende à totalidade do bem, visto que objetiva resguardar a família contra o desabrigo e não apenas prevenir o perdimento de bens da meeira.

Informações do Inteiro Teor

Discute-se se o bem de família perde a sua impenhorabilidade no caso de ter sido doado aos filhos do executado e da meeira, tendo permanecido como residência da família.

Conforme a jurisprudência do STJ, não há falar em fraude ao credor apta a destituir a proteção do bem doado pela embargada, pois não houve alteração na destinação original do imóvel, qual seja, a moradia da família. Nesse sentido, REsp n. 1.926.646/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/2/2022, DJe de 18/2/2022.

Na hipótese, uma vez que foi constatado que o imóvel é utilizado como residência da meeira e do executado de forma contínua, há que se manter a impenhorabilidade do bem de família.

Dessa forma, reconhecida a proteção do bem de família em relação à meação da esposa, que sequer é devedora na ação principal, tal proteção se estende à totalidade do bem, visto que objetiva resguardar a família contra o desabrigo e não apenas prevenir o perdimento de bens da meeira.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

"A lei brasileira não tem aplicação em relação à sucessão dos bens no exterior, inclusive para fins de eventual compensação de legítimas"

 


Processo

Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 27/8/2024, DJe 29/8/2024.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO INTERNACIONAL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Inventário. Limites da jurisdição brasileira. Direito material. Observância das regras do direito alienígena. Bens situados no exterior. Competência da justiça local.

Destaque

A lei brasileira não tem aplicação em relação à sucessão dos bens no exterior, inclusive para fins de eventual compensação de legítimas.

Informações do Inteiro Teor

Cinge-se a controvérsia a discutir a competência para processar inventário de falecido residente no Brasil, mas que possuía bens no exterior.

Nos termos do art. 23, II, do CPC/15, é de competência exclusiva da autoridade brasileira, com exclusão de qualquer outra, em matéria de sucessão hereditária, proceder ao inventário de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional.

A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) elegeu o domicílio como relevante regra de conexão para solver conflitos decorrentes de situações jurídicas relacionadas a mais de um sistema legal (conflitos de leis interespaciais), porquanto consistente na própria sede jurídica do indivíduo.

Assim, a lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o direito ao nome, a capacidade jurídica e dos direitos de família (art. 7º). Por sua vez, a lei do domicílio do autor da herança regulará a correlata sucessão, nos termos do art. 10 da lei sob comento.

Em que pese a prevalência da lei do domicílio do indivíduo para regular as suas relações jurídicas pessoais, conforme preceitua a LINDB, esta regra de conexão não é absoluta.

Consoante a doutrina, outros elementos de conectividade podem, a depender da situação sob análise, revelarem-se preponderantes e, por conseguinte, excepcionar a aludida regra, tais como a situação da coisa, a faculdade concedida à vontade individual na escolha da lei aplicável, quando isto for possível, ou por imposições de ordem pública.

Dessa maneira, em uma interpretação sistemática das disposições contidas na LINDB e no CPC/2015, depreende-se que o legislador inviabilizou a unidade da sucessão, amparada no princípio da universalidade sucessória e determina que a transmissão do conjunto de bens deve ser governada por uma lei única, pois pela lei se transmite uma universalidade, um patrimônio, ou seja, o conjunto de direitos reais e obrigacionais, ativos e passivos pertencentes a uma pessoa.

Diante disso, a jurisprudência do STJ segue a orientação de que o Brasil adota o princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, pois, ainda que o art. 10 da LINDB preceitue a prevalência da lei do domicílio do indivíduo para regular as suas relações jurídicas, esta regra não é absoluta, devendo o inventário e a partilha ser processados no lugar da situação dos bens deixados pelo falecido, não podendo o juízo do inventário no Brasil decidir sobre bens sitos no estrangeiro.

O entendimento que tem prevalecido nesta Corte Superior é o de que a lei brasileira não tem aplicação em relação à sucessão dos bens no exterior, inclusive para fins de eventual compensação de legítimas.

Portanto, o ordenamento jurídico pátrio adotou a pluralidade sucessória, a qual prestigia a legislação do local em que situados os bens (lex rei sitae) para regular a sucessão hereditária, impedindo que o Poder Judiciário brasileiro conheça de bens situados no exterior.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

"Se o pedido de divórcio não for apreciado e a parte autora falecer durante o processo, o reconhecimento da dissolução do vínculo poderá ser realizado postumamente"

 


Processo

Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 27/8/2024, DJe 30/8/2024.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Pedido de divórcio. Morte superveniente do autor da ação. Direito potestativo. Reconhecimento póstumo. Possibilidade. Emenda constitucional n. 66/2010. Declaração de vontade. Suficiência.

Destaque

Se o pedido de divórcio não for apreciado e a parte autora falecer durante o processo, o reconhecimento da dissolução do vínculo poderá ser realizado postumamente.

Informações do Inteiro Teor

O § 1º do art. 1.571 do Código Civil dispõe que "o casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio (...)". Assim, a ocorrência de qualquer um desses fatos - morte ou divórcio - põe fim ao casamento. Contudo, a questão deixa de ser tão simples quando os dois eventos - morte e divórcio - apresentam-se.

No caso de origem, o Tribunal local concluiu que, a despeito do divórcio antecipadamente reconhecido, a causa de extinção do casamento foi, ao final, a morte do cônjuge autor da ação, revogando a liminar anteriormente concedida.

Entretanto, as consequências jurídicas dessa opção, a prevalecer uma ou outra forma de extinção do casamento, são tão distintas - notadamente nos campos previdenciário e sucessório - que o tema exige um exame acurado e, sobretudo, um tratamento jurisprudencial uniforme.

A posição adotada pela Corte local segue o entendimento que predominou por muito tempo na doutrina e na jurisprudência.

Contudo, o advento da Emenda Constitucional n. 66/2010, que alterou a redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal, trazendo o que a doutrina chama de uma "completa mudança de paradigma".

A aludida alteração constitucional dispensou qualquer requisito prévio para a extinção do casamento, além da vontade da pessoa casada de pôr fim à relação, posicionando o instituto na categoria dos chamados "direitos potestativos".

Portanto, a dissolução do casamento passou a depender, unicamente, da válida manifestação da vontade de um dos cônjuges de não mais permanecer casado. Nesse contexto, não há mais razão para que os efeitos da manifestação de vontade da parte de dissolver o vínculo fiquem atrelados à sentença definitiva.

Dessa forma, ainda que não haja consenso entre as partes no que se refere às consequências do fim da relação, e o divórcio seja caracterizado como "litigioso", fato é que o litígio não recai sobre o divórcio em si, mas sobre as demais questões dele decorrentes, como as de cunho patrimonial (partilha, alimentos) e as de organização da filiação (guarda, regime de visitas etc.).

Não havendo, portanto, possibilidade de "litígio" (controvérsia) em torno da extinção do vínculo em si, o divórcio pode (e deve) ser reconhecido imediatamente, com fundamento nos arts. 355 ou 356 do CPC (a depender de haver ou não necessidade de prosseguimento do feito para decidir outras questões), mediante decisão de mérito, de cognição exauriente, cujos efeitos passam a surtir desde logo.

Nessas situações, portanto, caso o autor venha a falecer no curso do processo, o seu estado civil já terá sido alterado para divorciado, não cabendo mais cogitar de eventual viuvez. Mas, se, eventualmente, nenhuma dessas providências tenha sido tomada, e o autor da ação de divórcio venha a falecer antes de qualquer decisão acerca do seu pedido, ainda assim o divórcio poderá ser reconhecido, pois a manifestação de vontade é o que basta para tanto.

Assim, é possível afirmar que não se mostra adequada a extinção da ação de divórcio pela morte do autor sem antes se apreciar o pleito de dissolução do vínculo, conforme a vontade por ele expressada. Nessa linha, o enunciado nº 45 do IBDFAM: "A ação de divórcio já ajuizada não deverá ser extinta sem resolução de mérito, em caso do falecimento de uma das partes".

Ademais, a possibilidade de reconhecimento do divórcio após a morte também foi incorporada na proposta de Reforma do Código Civil apresentada por comissão de juristas ao Senado Federal, em abril de 2024. Segundo o relatório, o § 4º do art. 1.571 do Código Civil passaria a ter a seguinte redação: "O falecimento de um dos cônjuges ou conviventes, depois da propositura da ação de divórcio ou de dissolução da união estável, não enseja a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data estabelecida na sentença como aquela do final do convívio".

Sendo assim, conclui-se que, ainda que não haja, por ora, legislação específica a respeito, a natureza do direito material posto em juízo implica a prevalência da vontade livremente manifestada em vida sobre a morte na definição da causa da dissolução do casamento.