Responsável pela estabilização da
jurisprudência infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)
retomou a discussão de uma questão controversa que já foi debatida diversas
vezes em seus órgãos fracionários: a aplicação da taxa Selic nas indenizações
civis estabelecidas judicialmente. Na
prática, a controvérsia afetada à Corte Especial pela Quarta Turma diz respeito
ao artigo 406 do Código Civil (CC) de 2002, que dispõe que, quando os juros
moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando
provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em
vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. O
problema é que existem duas correntes opostas sobre qual taxa seria essa, o que
vem impedindo um entendimento uniforme sobre a questão. Em precedentes
relatados pela ministra Denise Arruda (REsp 830189) e pelo ministro Francisco Falcão (REsp 814157), a Primeira Turma do STJ entendeu
que a taxa em vigor para o cálculo dos juros moratórios previstos no artigo 406
do CC é de 1% ao mês, nos termos do que dispõe o artigo 161, parágrafo 1º, do
Código Tributário Nacional (CTN), sem prejuízo da incidência da correção
monetária. Em precedentes relatados pelos ministros Teori Zavascki (REsp 710385) e Luiz Fux (REsp 883114), a mesma Primeira Turma decidiu que
a taxa em vigor para o cálculo dos juros moratórios previstos no artigo 406 do
CC é a Selic. A opção pela taxa Selic tem prevalecido nas decisões proferidas
pelo STJ, como no julgamento do REsp 865363, quando a Quarta Turma reformou o
índice de atualização de indenização por danos morais devida à sogra e aos
filhos de homem morto em atropelamento, que inicialmente seria de 1% ao mês,
para adotar a correção pela Selic. Também no REsp 938564 a Turma aplicou a Selic à indenização
por danos materiais e morais devida a um homem que perdeu a esposa em acidente
fatal ocorrido em hotel onde passavam lua de mel.
No caso específico (REsp 1081149) afetado à Corte Especial e relatado
pelo ministro Luis Felipe Salomão, uma mulher ajuizou ação declaratória de
inexistência de dívida com pedido de indenização por dano moral, contra a
Companhia Securitizadora de Créditos Financeiros Gomes Freitas. Segundo os
autos, a autora teve seus documentos pessoais falsificados, registrou boletim
de ocorrência policial e cautelarmente incluiu nos cadastros da Câmara de
Dirigentes Lojistas (CDL) a informação "documento clonado", ao lado
de seu nome. Mesmo assim, a empresa determinou a inscrição de seu nome em
cadastros de inadimplentes, em razão de dívida contraída por terceiros
valendo-se da documentação falsificada. O juízo de direito da 14ª Vara Cível da
Comarca de Porto Alegre julgou os pedidos procedentes. Reconheceu a
inexistência da dívida, determinou o cancelamento da inscrição indevida e
condenou a companhia ao pagamento de indenização por danos morais no valor de
R$ 3.800, atualizada pelo IGP-M e juros de 12% ao ano. Em grau de apelação, o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu parcial provimento ao recurso da
autora para elevar a indenização a R$ 7 mil, fazendo incidir correção monetária
e juros moratórios somente a partir da data daquele arbitramento. A autora
recorreu ao STJ, sustentando que os juros moratórios e a correção monetária
advindos de relação extracontratual devem incidir a partir do evento danoso
(Súmulas 43 e 54 do STJ) e não do arbitramento da indenização. O julgamento do
recurso foi interrompido por pedido de vista antecipada formulado pelo ministro
João Otávio de Noronha. Ele entende que a questão deve ser previamente
analisada pela Segunda Seção – especializada em direito privado – e não
diretamente pela Corte Especial.
Para o ministro Luis Felipe
Salomão, o julgamento desse caso é a oportunidade para o STJ consolidar
entendimentos sobre a incidência da taxa de juros moratórios em dívidas civis
(artigo 406 do CC), o momento inicial para sua fluência e a exata delimitação do
que seja responsabilidade contratual e extracontratual para efeitos de
incidência de juros e correção monetária. Para ele, é importante adequar os
verbetes sumulares e os precedentes da Corte. A jurisprudência do marco inicial
de incidência dos juros moratórios em responsabilidade extracontratual já está
pacificada pela Súmula 54, que determina: "Os juros moratórios fluem a
partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual."
A incidência de correção
monetária na indenização por danos morais está pacificada pela Súmula 362:
"A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a
data do arbitramento." Isso significa que os juros moratórios e a correção
monetária decorrentes de responsabilidade extracontratual fluem a partir de
momentos diversos – os juros moratórios a partir do evento danoso, e a correção
monetária, em caso de dano moral, a partir do arbitramento do valor da
indenização. No caso de responsabilidade civil contratual, a jurisprudência
determina a incidência de juros a partir da citação ou do vencimento da dívida,
conforme inúmeros precedentes julgados pela Corte Superior, entre eles o REsp 1257846, relatado pelo ministro Sidnei
Beneti, e o REsp 1078753, relatado pelo ministro João Otávio
de Noronha.
A controvérsia que ainda não foi
harmonizada pelo STJ não envolve o momento, mas o percentual que deve ser
aplicado para efeito de correção da dívida. Em embargos relatados pelo ministro
Teori Zavascki (EREsp 727842), a Corte Especial firmou orientação
no sentido de que "atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere
artigo 406 do CC é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e
Custódia (Selic), por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais".
Posteriormente, também ficou consignado que "apesar de a Selic englobar
juros moratórios e correção monetária, não se verifica bis in idem, pois sua
aplicação é condicionada à não-incidência de quaisquer outros índices de
correção monetária". E é justamente nesse contexto que gira a
controvérsia. Para o ministro Luis Felipe Salomão, já que a taxa Selic engloba
juros moratórios e correção monetária em sua formação, sua incidência em
dívidas civis pressupõe a fluência simultânea de juros e correção, fato que não
ocorre em indenizações civis (Súmulas 54 e 362). Assim, defende o ministro, é
necessário harmonizar a aplicação da Selic com as Súmulas 54 e 362 do STJ, que
estabelecem a contagem de juros e de correção monetária em períodos distintos.
Luis Felipe Salomão reconhece que
a taxa em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional
é a Selic, mas entende que sua aplicação em dívidas civis não constitui
“diretriz peremptória incontornável prevista no Código Civil”, sendo apenas um
parâmetro a ser adotado na falta de outro específico previsto para determinada
relação jurídica, como, por exemplo, o que há para dívidas condominiais (artigo
1.335, parágrafo 1º, do CC). “Não obstante, parece claro que o artigo 406 do CC
não encerra preceito de caráter cogente, tanto é assim que confere prevalência
às estipulações contratuais acerca dos juros moratórios (‘quando os juros
moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada’) e a
estipulações legais específicas, deixando expressa a subsidiariedade da
incidência dessa taxa”, ressalta o ministro. Mesmo discordando da aplicação da
Selic em indenizações civis, ele consignou em seu voto ter aplicado tal
entendimento em julgamento ocorrido na Segunda Seção para evitar o “pernicioso
dissídio jurisprudencial interno”, mas ressalvou sua posição contrária à
“aplicação indiscriminada da Selic”.
Com base no Enunciado 20,
aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça
Federal em setembro de 2002, o ministro propõe que o STJ adote a utilização de
índice oficial de correção monetária ou tabela do próprio tribunal local,
somado à taxa de juros de 1% ao mês (ou 12% ao ano), nos termos do artigo 161
do Código Tributário Nacional (CTN). O referido enunciado dispõe que “a taxa de
juros moratórios a que se refere o artigo 406 é a do artigo 161, parágrafo 1º,
do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% ao mês”. O mesmo enunciado, que
possui caráter orientador da interpretação dos artigos, dispõe que a utilização
da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente
segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional,
porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente
correção monetária; é incompatível com a regra do artigo 591 do novo Código
Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser
incompatível com o artigo 192, parágrafo 3º, da Constituição Federal, se
resultarem juros reais superiores a 12% ao ano. “Independentemente de
questionamento acerca do acerto ou desacerto da adoção da Selic como taxa de
juros a que se refere o artigo 406 do Código Civil, o fato é que sua incidência
se torna impraticável em situação como a dos autos, em que os juros moratórios
fluem a partir do evento danoso (Súmula 54) e a correção monetária em momento posterior
(Súmula 362)”, destaca o ministro em seu voto.
Para o relator do recurso afetado
à Corte Especial, é exatamente pelo fato de englobar em sua formação tanto
remuneração quanto correção, que a Selic não reflete, com perfeição e justiça,
o somatório de juros moratórios e a real depreciação da moeda – que a correção
monetária visa recompor pelos índices de inflação medida em determinado
período. “A Selic não é um espelho do mercado; é taxa criada e reconhecida com
forte componente político – e não exclusivamente técnico –, que interfere na
inflação para o futuro, ao invés de refleti-la, com vistas na economia de um
período anterior e na projeção para os próximos meses, em consonância também
com as metas governamentais”, entende Salomão. Para balizar sua proposta, o
ministro incluiu em seu voto um minucioso estudo sobre a taxa de juros paga com
a utilização da Selic desde 2003 e constatou que sua adoção na atualização de
dívidas judiciais conduz a uma oscilação anárquica dos juros efetivamente pagos
pela mora. “Constata-se, por exemplo, o pagamento de juros a 12,31% ao ano em
2005, contra o irrisório 1,30% ao ano em 2012, períodos em que a inflação foi
praticamente idêntica (5,69% e 5,84% a.a.), respectivamente”, analisou o relator.
Para ele, a adoção da Selic para efeitos de pagamento tanto de correção
monetária quanto de juros moratórios pode conduzir a situações extremas: por um
lado, de enriquecimento sem causa ou, por outro, de incentivo à litigância
habitual, recalcitrância recursal e desmotivação para soluções alternativas de
conflito, ciente o devedor de que sua mora não acarretará grandes consequências
patrimoniais. “Aliás, como as dívidas judiciais são atualizadas mensalmente, e
não anualmente, há registros de meses em que a Selic ficou abaixo de índices
oficiais que medem exclusivamente a inflação, o que significa juros negativos e
que, em boa verdade, nesse período, foi o credor que pagou juros ao devedor, o
que não se sustenta”, ressaltou o ministro em seu voto. Para Luis Felipe
Salomão, a adoção da Selic na relação de direito público alusiva a créditos
tributários ou a dívidas fazendárias é inquestionável, mas não há motivos para
transpor esse entendimento para relações puramente privadas, nas quais se faz
necessário o cômputo justo e seguro de correção monetária e juros moratórios,
“atribuição essa que, efetivamente, a Selic não desempenha bem”.
No caso afetado à Corte Especial,
o ministro relator deu parcial provimento ao recurso especial para descartar a
incidência da correção monetária a partir da inscrição indevida. Também
consignou que a indenização por danos morais, para efeito de incidência de
juros de mora, deve ser considerada sempre responsabilidade extracontratual –
“até porque, no caso concreto, a ausência de contrato entre a autora e a
instituição financeira foi exatamente o que justificou a propositura da ação”. Assim,
entendeu o ministro, deve ser aplicada a Súmula 54 do STJ, com os juros
moratórios fluindo a partir do evento danoso. Em relação à correção monetária,
Salomão sustentou que a mesma deve incidir a partir do arbitramento da
indenização em grau de apelação (Súmula 362), ao contrário do que propõe a
recorrente, que busca a contagem também desde a inscrição indevida. O índice de
correção será o da tabela adotada pelo tribunal de origem, desde que oficial. O
julgamento foi interrompido por pedido de vista logo após a apresentação do
voto, de forma que nenhum ministro votou após o relator. Não há data para
retomada da discussão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário