É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.
Com base nessa orientação, o Plenário, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário em que discutida a constitucionalidade da Lei estadual 12.131/2004, que acrescentou o parágrafo único (1) ao art. 2º da Lei 11.915/2003 do estado do Rio Grande do Sul (Código Estadual de Proteção aos Animais).
Para a Corte, a legislação local está em consonância com a Constituição Federal (CF). Sob o prisma formal, improcede a alegação de inconstitucionalidade ao argumento de a legislação versar sobre matéria penal. O ato normativo impugnado acrescentou ao código estadual situação de exclusão de responsabilidade administrativa na hipótese de abate de animais em cultos religiosos, que em nada se relaciona com a excludente de ilicitude penal.
O caráter penal da legislação, por sua vez, exigiria a definição de fatos puníveis e suas respectivas sanções. O mencionado código estabelece regras de proteção à fauna, define conceitos e afasta a prática de determinadas condutas. Inexiste, portanto, descrição de infrações, tampouco de penas a serem impostas. Dessa forma, a natureza do diploma não é penal, mostrando-se impróprio falar em usurpação de competência da União.
Igualmente não se pode considerar ofensa à competência da União para editar normas gerais de proteção do meio ambiente, sobretudo ante o silêncio da legislação federal acerca do sacrifício de animais com finalidade religiosa. Os dispositivos apontados pelo recorrente (arts. 29 e 37 (2) da Lei 9.605/1988) cuidam tão somente do abate de animais silvestres, sem abranger os domésticos, utilizados nos rituais.
A par disso, as regras federais foram editadas em contexto alheio aos cultos religiosos, voltando-se à tutela da fauna silvestre, especialmente em atividades de caça. O quadro impõe o reconhecimento de que a União não legislou sobre a imolação de animais. A omissão na edição de normas gerais sobre meio ambiente outorga ao estado liberdade para estabelecer regras a respeito, observado o § 3º (3) do art. 24 da CF.
Sob o prisma material, o colegiado asseverou que a temática envolve a exegese de normas fundamentais, alcançando a conformação do exercício da liberdade de culto e de liturgia. A religião desempenha papel importante em vários aspectos da vida da comunidade, e essa centralidade está consagrada no art. 5º, VI (4), da CF.
Pontuou que o Estado brasileiro tem o dever de proteger as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, § 1º (5), da CF). Nessa perspectiva, o modo de ser e viver das comunidades, bem como a experiência da liberdade religiosa são vivenciadas com base em práticas não institucionais.
Ademais, entendeu não ter havido violação aos princípios da laicidade e da igualdade. A proteção legal às religiões de matriz africana não representa um privilégio, mas sim um mecanismo de assegurar a liberdade religiosa, mantida a laicidade do Estado. De fato, o Estado não pode estar associado a nenhuma religião, nem sob a forma de proteção nem de perseguição, numa separação formal entre Igreja e Estado. A laicidade do Estado veda o menosprezo ou a supressão de rituais, principalmente no tocante a religiões minoritárias ou revestidas de profundo sentido histórico e social.
A CF promete uma sociedade livre de preconceitos, entre os quais o religioso. A cultura afro-brasileira merece maior atenção do Estado, por conta de sua estigmatização, fruto de preconceito estrutural. A proibição do sacrifício negaria a própria essência da pluralidade cultural, com a consequente imposição de determinada visão de mundo. Essa designação de especial proteção aos cultos de culturas historicamente estigmatizadas não ofende o princípio da igualdade, sendo válida a permissão do sacrifício de animais a determinado segmento religioso, como previsto na norma questionada.
Por fim, a Corte entendeu que admitir a prática de imolação não significa afastar o amparo aos animais estampado no art. 225, § 1º, VII (6), da CF. Deve-se evitar que a tutela de um valor constitucional relevante aniquile o exercício de um direito fundamental, revelando-se desproporcional impedir todo e qualquer sacrifício religioso quando diariamente a população consome carnes de várias espécies.
Vencidos, em parte, os ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que admitiram a constitucionalidade da lei, porém para dar interpretação conforme à Constituição no sentido de ser estendida a excludente de responsabilidade a cultos de quaisquer religiões que realizem a sacralização com abates de animais, afastando maus-tratos e tortura. O relator ainda condicionou o abate ao consumo da carne.
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