quarta-feira, 21 de agosto de 2019

STF julga recolhimento compulsório de crianças e direito de ir e vir

O Plenário julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade em que se impugnavam os arts. 16, I (1); 105 (2); 122, II e III (3); 136, I (4); 138 (5); e 230 (6) da Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O Tribunal afirmou que as normas impugnadas devem ser analisadas à luz do que preveem os arts. 5º, caput e incisos XXXV, LIV, LXI (7), e 227 (8) da CF.

As referidas normas possuem íntima ligação com regras da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), da Convenção sobre os Direitos da Criança, das Regras de Pequim para a Administração da Justiça de Menores e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

A Corte sublinhou que o art. 16, I, do ECA consagra a liberdade de locomoção da criança e do adolescente, “ressalvadas as restrições legais”, e está de acordo com a doutrina da proteção integral positivada no art. 227 da CF, que assegura o direito à dignidade, ao respeito e à liberdade das pessoas em desenvolvimento, proibindo toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. Dessa forma, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade no direito de liberdade – de ir e vir – previsto no art. 16, I, da Lei 8.069/1990.

Ressaltou que o direito em questão constitui cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, IV, da CF, e não pode sequer ser suprimido ou indevidamente restringido mediante proposta de emenda constitucional.

Ademais, a cláusula de abertura do art. 5º, § 2º, da CF leva à conclusão de que a norma do art. 16, I, do ECA está em consonância não só com os dispositivos constitucionais mencionados, mas também com o direito à liberdade e a proibição à discriminação, previstos nos arts. 1º e 2º da DUDH; com a proibição contra interferências ilegítimas e arbitrárias na vida particular das crianças, prevista no art. 16 da Convenção sobre Menores da ONU; com a norma de proteção integral estabelecida no art. 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos; e com as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores.

Ao contrário do que defendido pelos autores da ação, a exclusão da referida norma é que poderia ensejar interpretações que levassem a violações aos direitos humanos e fundamentais acima transcritos, agravando a situação de extrema privação de direitos aos quais são submetidos crianças e adolescentes no país, em especial para aqueles que vivem em condição de rua.

As privações sofridas e a condição de rua desses menores não podem ser corrigidas com novas restrições a direitos e o restabelecimento da doutrina menorista que encarava essas pessoas enquanto meros objetos da intervenção estatal.

É certo que a liberdade das crianças e adolescentes não é absoluta, admitindo restrições legalmente estabelecidas e compatíveis com suas condições de pessoas em desenvolvimento, conforme a parte final do art. 16, I, do ECA. Nesse sentido, a capacidade de exercício de direitos pode ser limitada, em razão da imaturidade.

Reputou que o pedido formulado nesta ação busca eliminar completamente o direito de liberdade dos menores, o núcleo essencial, indo além dos limites imanentes ou “limites dos limites” desse direito fundamental, restabelecendo a já extinta “prisão para averiguações”, que viola a norma do art. 5º, LXI, da CF.

Também não se vislumbrou a alegada inconstitucionalidade à luz do mandado de criminalização constante do art. 227, § 4º, da CF, que impõe ao legislador o dever de punir severamente atos de violência praticados contra crianças e adolescentes.

A declaração de inconstitucionalidade do referido tipo penal representaria verdadeiro cheque em branco para que detenções arbitrárias, restrições indevidas à liberdade dos menores e violências de todo tipo pudessem ser livremente praticadas, o que não pode ser admitido.

Aliás, o crime em questão é sancionado com pena de detenção de seis meses a dois anos, tratando-se, dessa forma, de infração penal de menor potencial ofensivo. Portanto, o tipo penal se aproxima mais da proibição de proteção deficiente que da inconstitucionalidade por excesso de criminalização.

Ademais, a existência da referida norma não impede a apreensão em flagrante de menores pela prática de atos análogos a crimes.

A Corte afastou, de igual modo, a alegada violação à inafastabilidade da jurisdição pelos arts. 105, 136 e 138 do ECA.

Esclareceu que o tratamento adequado para a criança infratora é um desafio para a sociedade. A decisão do legislador de não aplicar medidas mais severas está em harmonia com a percepção de que a criança é um ser em desenvolvimento que precisa, acima de tudo, de proteção e educação, ou seja, trata-se de uma distinção compatível com a condição de maior vulnerabilidade e de pessoa em desenvolvimento, quando comparada a adolescentes e pessoas adultas.

O legislador dispõe de considerável margem de discricionariedade para definir o tratamento adequado à criança em situação de risco criada por seu próprio comportamento. A opção pela exclusividade das medidas protetivas não é desproporcional; ao contrário, alinha-se com as normas constitucionais e internacionais.

A atuação do conselho tutelar nesses casos de atos infracionais praticados por crianças não representa qualquer ofensa à Constituição nem viola a garantia da inafastabilidade da jurisdição. Nesse sentido, cumpre ressaltar que o conselho tutelar é um colegiado de leigos, assim como o tribunal do júri, previsto no inciso XXXVIII do art. 5º da CF.

Trata-se de órgão que permite a participação direta da sociedade na implementação das políticas públicas definidas no art. 227 da CF, voltadas para a promoção e proteção da infância, em consonância com as mais atuais teorias de justiça, democracia e participação popular direta.

A atuação do conselho tutelar não exclui a apreciação de eventuais demandas ou lides pelo Poder Judiciário, inexistindo, portanto, a alegada ofensa ao art. 5º, XXXV, da CF.

Por fim, o colegiado repeliu a apontada inconstitucionalidade do art. 122, II e III, do ECA por violação à proporcionalidade.

Novamente, o espaço de conformação é amplo. Deve ser reconhecida uma margem larga de discricionariedade ao legislador para estabelecer as medidas aplicáveis ao adolescente infrator.

As infrações violentas podem, desde logo, corresponder à internação (inciso I). O objetivo de prevenção é especialmente resguardado nos casos em que a integridade física das vítimas é posta em risco. Fora isso, a lei evita ao máximo conferir ao magistrado o poder de aplicar a internação.

Tem-se aí uma opção perfeitamente proporcional do legislador, em razão do caráter estigmatizante e traumatizante da internação de uma pessoa em desenvolvimento. Isso sem falar da precária situação das entidades de acolhida.

A referida opção legislativa encontra-se de acordo com as normas constitucionais e internacionais que impõem a utilização das medidas de internação como último recurso, privilegiando os princípios da excepcionalidade, brevidade e proporcionalidade das medidas restritivas da liberdade.

(1) ECA: “Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;”
(2) ECA: “Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101.”
(3) ECA: “Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando: (...) II – por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III – por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.”
(4) ECA: “Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: I – atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII;”
(5) ECA: “Art. 138. Aplica-se ao Conselho Tutelar a regra de competência constante do art. 147.”
(6) ECA: “Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena - detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais.”
(7) CF/1988: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (...) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (...) LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;”
(8) CF/1988: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

ADI 3446/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7 e 8.8.2019. (ADI-3446)

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