A Convenção Internacional de
Aviação Civil define acidente aéreo como um evento associado à operação de uma
aeronave, que ocorre entre os momentos de embarque de pessoas para voo e
desembarque do último passageiro, e no qual uma ou mais pessoas são grave ou
fatalmente feridas. Outra definição bastante aceita é aquela em que a aeronave
tenha sofrido falhas ou danos na estrutura, tenha desaparecido ou ficado
totalmente inacessível. Mais de 80% de todos os acidentes na aviação ocorreram
imediatamente antes, durante ou depois da decolagem ou da aterrissagem, e é
frequentemente descrito como resultado de erro humano. Desde 1990, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) vem julgando processos sobre o tema. E de lá para cá,
muitas decisões importantes já foram tomadas. Confira algumas delas.
Em setembro de 2006, um boing da Gol Linhas Aéreas
Inteligentes S/A se chocou com um jato Legacy, causando a morte dos 154
passageiros e tripulantes. Em decorrência dessa tragédia, várias famílias
buscaram na Justiça reparação ao menos financeira de suas perdas. Em uma dessas
ações, a Quarta Turma confirmou o pagamento de indenização, por danos morais, a
irmã de uma das vítimas do acidente. Os ministros, seguindo o entendimento do
relator, ministro Luís Felipe Salomão, mantiveram a condenação da Gol ao
pagamento da indenização, apenas reduzindo o valor estabelecido de R$ 190 mil
para R$ 120 mil (Ag 1316179). A decisão ocorreu no julgamento de
agravo regimental da companhia aérea, sustentando que não foram observados os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no dever de indenizar.
Alegou que a irmã não merecia receber o pagamento já que haveria outros
parentes mais próximos, como os pais com os quais já teria celebrado um acordo.
Ao analisar o caso, Salomão destacou que, de acordo com a jurisprudência do
STJ, os irmãos da vítima podem pleitear indenização por danos morais em razão
do falecimento de outro irmão. Entretanto, o relator considerou o valor R$ 190
mil excessivo, reduzindo o valor para R$ 120 mil, mais eventuais correções e
juros de mora. Para fixar este entendimento, a Terceira Turma também entendeu
ser possível que irmãos das vítimas pleiteiem indenização por danos morais,
independente de acordos existentes entre a empresa e os pais, viúvos ou filhos
do falecido, desde que afirmem fatos que possibilitem esse direito (REsp 1291702). Para o colegiado, a questão da
indenização não é sucessória, mas obrigacional, e por isso a legitimidade para
propor ação de indenização não está restrita ao cônjuge, ascendentes e
descendentes, mas aqueles atingidos pelo sofrimento da perda do ente querido.
Quanto aos controladores de voo
que trabalhavam no dia do acidente entre a aeronave da Gol e o jato Legacy, a
Quinta Turma manteve decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que
absolveu dois controladores de voo acusados de negligência (REsp 1326030). Seguindo voto da relatora,
ministra Laurita Vaz, o colegiado concluiu que o recurso apresentado pelo
Ministério Público Federal (MPF) pretendia o reexame das provas reunidas no
processo, o que foge à competência do STJ. Com base nessas provas – em decisão
que a Quinta Turma considerou suficientemente fundamentada –, a Justiça Federal
de primeira e segunda instância havia concluído que os controladores receberam
a informação errada de que o Legacy mantinha seu nível de voo, quando, na
verdade, estava no nível do avião da Gol, que se deslocava em sentido
contrário.
E quando o acidente aéreo
acontece, mas as sequelas da tragédia só aparecem anos depois? A vítima ainda
tem o direito de pedir uma indenização pelos danos sofridos? Para a Quarta
Turma, a vítima tem o direito de receber indenização mesmo que o acidente tenha
acontecido há alguns anos. Com base nesse entendimento, a TAM teve que
indenizar um passageiro que apresentou sequelas degenerativas manifestadas mais
de quatro anos após um acidente. Os ministros rejeitaram o recurso da empresa,
que alegava ter passado o prazo legal para o ajuizamento da ação (REsp 687071). Para o relator, ministro Raul
Araújo, a data inicial da prescrição é aquela em que a vítima tomou
conhecimento das sequelas – no caso, o acidente ocorreu em fevereiro de 1990,
as sequelas foram conhecidas em 1994 e a ação foi ajuizada em junho de 1995.
Assim, tanto faz adotar o prazo prescricional de cindo anos, previstos no
Código de Defesa do Consumidor (CDC), ou de dois ou três anos de que trata o
Código Brasileiro de Aeronáutica, conforme pretendia a TAM. Por fim, o ministro
destacou que há precedentes do STJ que aplica o prazo do CDC, quando outra
norma representar retrocesso a direitos assegurados aos consumidores.
O passageiro sofreu uma grave
lesão na medula em consequência de trágica aterrissagem da aeronave. O avião
pousou a 400 metros da pista do aeroporto de Bauru (SP), em cima de um carro. Após
o acidente, ele passou por cirurgia, ficou convalescente durante um ano e foi
dado como curado em fevereiro de 1991. No entanto, a partir de setembro daquele
ano, sequelas se manifestaram e, em 1994, foram confirmadas por exames e laudos
médicos. O passageiro teve a capacidade de trabalho parcialmente comprometida,
além de ter ficado impossibilitado da prática de atividades esportivas
diversas.
Em outro caso de indenização por
desastre aéreo julgado pela Quarta Turma, a família de um piloto de helicóptero
morto em trabalho teve o direito de pedir indenização 35 anos após o acidente.
Os familiares conseguiram afastar a prescrição de dois anos prevista no antigo
Código Brasileiro do Ar para pedir indenização em caso de acidente aéreo (REsp 593153). Os ministros, ao analisarem a
questão, aplicaram a prescrição de 20 anos prevista no Código Civil (CC) e
determinaram o retorno do caso ao juízo de primeira instância para que o
julgamento fosse realizado. O acidente fatal ocorreu em setembro de 1974. A
viúva e os filhos do piloto entraram com ação de indenização por danos morais e
materiais contra a Prospec S/A, empresa proprietária da aeronave, em junho de
1994. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) extinguiu a ação por
considerar que o direito estava prescrito. De acordo com o TJ, tanto o antigo
Código Brasileiro de Ar, vigente à época do acidente, quanto o Código
Brasileiro de Aeronáutica, que o substituiu, estabelecem prazo prescricional de
dois anos para pedir reparação de danos em decorrência de acidente aéreo.
No recurso ao STJ, os familiares
alegaram que deveria ser aplicado o prazo de 20 anos previsto no CC e que houve
culpa grave da empresa no acidente, o que afasta a atenuante de
responsabilidade para fixar a indenização. O relator, ministro Fernando
Gonçalves, entendeu que os dois códigos determinam prazo prescricional de dois
anos somente para ações decorrentes de danos causados a passageiros, bagagem ou
carga transportada, sem mencionar danos ao piloto. Para o relator, a
interpretação extensiva não pode ser aplicada em caso de prescrição, que
implica na perda de direito de ação. E como não há prazo específico que regule
a situação do piloto, aplica-se o prazo geral de 20 anos, previsto no artigo
177 do Código Civil de 1916, vigente à época do acidente.
Mas qual o prazo de prescrição em
caso de acidente aéreo? A Quarta Turma decidiu que o prazo prescricional para
indenização por danos decorrentes de acidentes aéreos é de cinco anos. Para os
ministros, vale a regra do Código de Defesa do Consumidor (CDC), por ser bem
mais ajustada à ordem constitucional. A ação original foi proposta contra a TAM
Linhas Aéreas S/A. A autora residia em rua próxima do local de queda de um
Fokker 100 da empresa, em 1996, no bairro paulistano de Jabaquara. Segundo
alegou, ela teria ficado psicologicamente abalada com o acidente. Disse que se
tornou incapaz de realizar tarefas domésticas depois de ver vários corpos
carbonizados e a destruição da vizinhança. Ela ajuizou ação apenas em maio de
2003, quase sete anos após o evento. Em primeiro grau, foi aplicado o prazo de
prescrição do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), de dois anos, apesar de o
juiz ter consignado que também pelo CDC estaria prescrita a ação. O Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJSP), porém, aplicou o prazo prescricional de 20 anos
previsto no Código Civil (CC) de 1916. Ao analisar recurso contra a decisão do
TJSP, a Quarta Turma entendeu que o prazo de prescrição já havia transcorrido
quando a ação foi ajuizada.
O relator, ministro Luis Felipe
Salomão, afirmou inicialmente que a autora pode ser considerada consumidora por
equiparação, já que foi prejudicada pela execução do serviço. Segundo ele, a
expressão “todas as vítimas do evento” do artigo 17 do CDC justifica a relação
de consumo por equiparação, já que foi afetada mesmo não tendo adquirido o
serviço diretamente. Pela jurisprudência do STJ, no conflito entre o CC/16 e o
CDC, prevalece a especialidade da lei consumerista. Para Salomão, com a
possibilidade de incidência do CDC surge outro conflito aparente de normas,
entre ele e o CBA. Ele afirmou que esse conflito não pode ser solucionado pelos
meios habituais de interpretação, como a aplicação da legislação mais especializada.
Isso porque o CBA é especial em razão da modalidade do serviço prestado,
enquanto o CDC é especial por força dos sujeitos protegidos. Para o relator, a
prevalência de uma das normas deve advir de diretrizes constitucionais. “Em um
modelo constitucional cujo valor orientador é a dignidade da pessoa humana,
prevalece o regime protetivo do indivíduo em detrimento do regime protetivo do
serviço” afirmou, referenciando doutrina do ministro Herman Benjamin. A
situação é similar aos casos de extravio de bagagem ou atraso em voos. Nessas
hipóteses, o STJ tem afastado as leis esparsas e tratados internacionais em
favor do Código de Defesa do Consumidor.
A Terceira Turma também pacificou
o entendimento de que o prazo de prescrição de ações relacionadas a acidente
aéreo, uma vez demonstrada a relação de consumo entre o transportador e aqueles
que sofreram o resultado do evento danoso, é regido pelo Código de Defesa do
Consumidor (REsp 1202013). A Turma, seguindo a relatora,
ministra Nancy Andrighi, concluiu que o prazo prescricional da pretensão que
versa sobre danos causados por acidente aéreo a terceiros na superfície “não
pode ser resolvido pela simples aplicação das regras tradicionais da
anterioridade ou da hierarquia, que levam à exclusão de uma norma pela outra;
mas sim pela aplicação coordenada das leis, pela interpretação integrativa, de
forma a definir o verdadeiro alcance de cada uma delas, à luz do concreto”. A
ministra esclareceu que, apesar de estabelecido o prazo prescricional de dois
anos para a pretensão de ressarcimento dos danos, essa regra específica não
impede a incidência do CDC, desde que a relação de consumo entre as partes
envolvidas esteja evidenciada.
Já em um processo um pouco mais
antigo, julgado em junho de 2006, a Segunda Turma teve que decidir quem era o
responsável por um acidente aéreo provocado pelo uso indevido da aeronave. Após
uma análise detalhada do caso, a Turma estabeleceu que a União não responde
pelos danos resultantes de acidente aéreo em razão de uso indevido de aeronave
de sua propriedade, mas cedida, gratuitamente, para treinamento de pilotos, a
aeroclube privado, que assumiu responsabilidade pelos riscos criados e danos
originados pelo uso do bem, conforme disposto no termo de cessão de uso a
título gratuito de aeronave (REsp 449407). O colegiado, seguindo entendimento
do relator, ministro João Otávio de Noronha, concluiu que a responsabilidade
civil pelos danos causados deve ser do explorador da aeronave, afastada a
solidariedade da União (proprietária) pelos danos decorrentes do acidente
aéreo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário