Mãe que entregou à filha dinheiro
para tratamento médico da neta tem, após o falecimento de ambas, legitimidade
ativa e interesse de agir para mover cobrança contra o espólio, a fim de ter o
valor restituído ao seu patrimônio. A decisão é da Terceira Turma, que proveu
recurso da mãe por entender que o negócio jurídico firmado entre as duas
configura contrato de mútuo gratuito, e não de doação. Para a Turma, se as duas
tivessem previsto a nulidade do suposto contrato de doação por ausência de
formalidade essencial para a caracterização da alegada antecipação de legítima,
elas teriam celebrado contrato de mútuo gratuito por prazo indeterminado, o que
autoriza, na hipótese, a conversão.
Após a venda de uma propriedade
de 54 hectares, a mãe entregou o dinheiro à filha para custear o tratamento
médico da neta, que sofrera um grave acidente de carro. Porém, em dezembro de
2002, a filha morreu. Em fevereiro de 2006, a neta também faleceu. Assim, o
ex-marido da filha passou a ser o único herdeiro. A mãe ajuizou ação de
cobrança contra o espólio da filha, pedindo a restituição ao seu patrimônio do
valor doado. Na ação, sustentou que a quantia entregue à filha era um
adiantamento da legítima, o qual, após a morte desta e da neta, deveria ser-lhe
restituído. Segundo ela, o crédito deve ser deduzido da parte disponível da
filha no inventário que tramita na Justiça. Em primeira instância, o pedido foi
negado ao entendimento de que o custeio do tratamento da neta foi ato de mera
liberdade da avó e de que o contrato de adiantamento de legítima celebrado não
é válido, na medida em que dispõe de herança de pessoa viva. Além disso, o
juízo de primeiro grau decidiu que faltou à doadora o interesse de agir. A
apelação foi negada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Irresignada,
a autora recorreu ao STJ sustentando que a doação do ascendente ao descendente,
em vida, deve ser reconhecida como adiantamento da legítima, o que impõe a
observância do direito de colação. Por fim, alegou ser parte legítima para
propor a ação de cobrança que visa à restituição ao seu patrimônio da quantia
doada à filha.
Ao analisar a questão, a relatora,
ministra Nancy Andrighi, destacou que a controvérsia do recurso diz respeito à
natureza do negócio jurídico celebrado entre mãe e filha. No caso, o tribunal
de origem definiu a doação como mera liberalidade. Porém, a doadora afirmou ser
antecipação da legítima. De fato, segundo a relatora, um dos poderes inerentes
à propriedade é o da livre disposição. Entretanto, quando se trata de doação,
justamente por encerrar disposição gratuita do patrimônio, o contrato deve ser
sempre interpretado restritivamente. A medida é para preservar o mínimo
existencial do doador, evitando-lhe prejuízos decorrentes de seu gesto de
generosidade. Para Nancy Andrighi, essa interpretação restritiva recai sobre o
elemento subjetivo do negócio, que é a intenção do doador de transferir
determinado bem ou vantagem para outrem sem qualquer contraprestação. Por essa
razão, é justificável que o contrato de doação seja celebrado por escritura
pública ou instrumento particular, salvo quando tiver por objeto bens móveis de
pequeno valor. “A ausência dessa solenidade macula de nulidade o negócio
jurídico entabulado entre as partes, conforme preceitua o artigo 145, inciso
IV, do Código Civil de 1916”, advertiu a ministra. Nancy Andrighi ressaltou
ainda que outro elemento essencial à doação, que decorre da própria natureza
contratual, é a aceitação do donatário, excetuadas apenas as hipóteses de
presunção e dispensa desse consentimento, previstas na lei civil. Para tanto, a
relatora citou precedente que afirma que a doação é contrato e,
consequentemente, além da manifestação de vontade do doador, exige também, em regra,
o consentimento do donatário. “Nesse contexto, por lhe faltarem elementos
essenciais, o negócio jurídico celebrado entre mãe e filha não pode ser
enquadrado, segundo afirma a recorrente, como um contrato de doação e,
portanto, não importa em antecipação de legítima”, acrescentou a relatora.
Sobre a inexistência de escritura
pública ou instrumento particular atestando o negócio jurídico firmado, a
relatora destacou que isso, em princípio, tornaria inválida a alegada doação.
De acordo com ela, houve a efetiva entrega de considerável quantia em dinheiro,
da mãe à filha, e esta, por sua vez, manifestou a vontade de restituir o valor
recebido. “Em situações como essa, o artigo 170 do Código Civil de 2002
expressamente autoriza a conversão do negócio jurídico, a fim de que sejam
aproveitados os seus elementos prestantes, considerando que as partes, ao
celebrá-lo, têm em vista os efeitos jurídicos do ato, independentemente da
qualificação que o direito lhe dá”, asseverou Nancy Andrighi. Por meio da
conversão – explicou a ministra –, conservam-se os atos jurídicos, porque são
interpretados de forma a produzir algum efeito, em vez de nada produzir, caso
fosse declarada a sua nulidade (princípio da conservação dos atos jurídicos).
Além disso, prestigia-se o resultado pretendido pelas partes (princípio da
boa-fé objetiva). Para que isso aconteça, a lei exige que haja um negócio
jurídico nulo; que esse negócio contenha os requisitos de outro; e que o fim a
que visavam as partes permita supor que teriam desejado o negócio convertido,
se houvessem previsto a nulidade.
Processo: REsp 1225861
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