ATUALIDADE
Biografias, Privacidade e Indenização
Procurador do
Estado do Rio de Janeiro. Professor Adjunto de Direito Civil da UERJ.
Doutor em Direito Privado Comparado pela Università degli Studi del
Molise (Itália). Mestre em Direito Civil pela UERJ. Autor de várias
obras, dentre elas Direitos da Personalidade, Editora Atlas.
Muitos jornalistas e
historiadores têm lembrado que o que está em jogo no amplo debate
público instaurado em torno das biografias não autorizadas é bem mais
que o direito de escrever biografias sem pedir autorização aos
biografados: é a liberdade de expressão numa sociedade democrática, aí
incluídas a liberdade científica dos historiadores e a própria liberdade
de imprensa. Nada mais verdadeiro. Entretanto, cumpre notar que o que
está em jogo do outro lado da disputa também é algo bem maior que a
eventual resistência de biografados à divulgação de fatos da sua vida
particular: é o direito à privacidade na sociedade brasileira.
Nunca
tivemos, entre nós, uma cultura da privacidade. Ao contrário: no
Brasil, cuja crônica política tem sido marcada por escândalos de
corrupção, a privacidade é vista quase sempre como uma aspiração
suspeita, coisa de quem tem algo a esconder. Quando uma operação
policial obtém provas de um esquema criminoso por meio de escutas
telefônicas ou da invasão de computadores sem prévia autorização
judicial, ninguém parece muito preocupado com a privacidade. Invoca-se
um “bem maior” – a segurança pública – diante do qual toda menção à
privacidade acaba desqualificada, como preocupação menor, como artigo de
luxo. De modo semelhante, quando uma celebridade reclama publicamente
que sua vida privada foi invadida, a irresignação acaba sendo visto como
incongruência (“quem mandou viver da fama?”) ou como capricho quase
irreal numa sociedade marcada por uma exposição cada vez mais intensa,
na internet, nas redes sociais, nos reality shows.
Mas é
justamente nesses momentos que o direito à privacidade se torna mais
importante. Quando a evolução tecnológica permite que o empregador
monitore indiscretamente o conteúdo dos e-mails do seu empregado, quando
a fotografia ou a digital de cada cidadão é colhida como etapa
necessária do seu ingresso em prédios comerciais, quando cada um de nós
passa a receber mensagens publicitárias no telefone celular enviadas por
empresas a quem nunca fornecemos nossos dados, é aí que a atuação da
ordem jurídica se torna imprescindível para instituir algum controle
social sobre práticas que quase distraidamente vão afrontando nossa
privacidade e colecionando nossos dados pessoais, sempre em nome de um
suposto bem maior, cada vez mais diminuto. Ao revelar que telefonemas e
e-mails de centenas de brasileiros, incluindo a Presidente da República,
foram monitorados por uma agência norte-americana, o caso Snowden
demonstrou como pode ser falacioso o discurso segundo o qual a
privacidade deve ceder à segurança pública. Uma vez que a privacidade é
rompida, ninguém mais pode dizer se os dados obtidos estão sendo usados
realmente para “garantir” a segurança de um país ou, muito diversamente,
para favorecer interesses comerciais de concorrentes da Petrobras. Essa
é uma característica inerente à privacidade: não se pode aplicá-la
apenas às informações que devam justificadamente permanecer privadas.
Para avaliar a justificativa, seria necessário conhecer tais informações
e isso representaria violação à privacidade por si só. Não há,
portanto, um direito à privacidade das informações privadas importantes.
Ou há direito a manter informações na esfera privada ou não há. Do
mesmo modo, não há um direito à privacidade que se aplique só aos Chefes
de Estado ou só às pessoas que não são suspeitas de crimes ou só às
pessoas anônimas. Ou há um direito à privacidade para todos ou não há.
A
Constituição de 1988 protege a privacidade não apenas como um direito,
mas como um direito fundamental. Também a liberdade de expressão
consiste em direito fundamental aos olhos do Constituinte. O tema das
biografias não autorizadas é fascinante justamente porque opõe esses
dois direitos fundamentais. Quando dois direitos do mesmo grau
hierárquico entram em confronto, a solução não pode ser nunca a
eliminação prévia de um em favor do outro. Deve-se buscar sempre uma
solução de equilíbrio, de concessões recíprocas, de definição de limites
da atuação de um direito e de outro, sem que um deles prevaleça, a
priori e em abstrato, sobre o outro.
A tese de que biografias só
podem circular se forem precedidas da autorização do biografado é uma
tese inconstitucional porque faz com que o direito à privacidade
prevaleça, a priori e em abstrato, sobre a liberdade de expressão.
Entretanto, a tese de que uma biografia pode tratar de todo e qualquer
aspecto da vida privada do biografado, sendo eventuais conflitos
resolvidos por meio de indenização posterior ao biografado, também é uma
tese inconstitucional. Pelo erro oposto: faz com que a liberdade de
expressão prevaleça a priori e em abstrato sobre a privacidade. A tese
da indenização, note-se, não representa um meio-termo porque, em última
análise, permite que a privacidade seja violada por quem quer que se
disponha a pagar o preço da violação. Ora, o que a Constituição assegura
a todo cidadão não é o direito a ser indenizado por violações à
privacidade; é o direito à privacidade em si. A indenização é um remédio
subsidiário, para quando nada mais funciona; não pode ser o remédio
principal para a violação de um direito fundamental, protegido pelo
Constituinte.
Façamos o exercício reverso: se um biógrafo que,
com suor, trabalho e intelecto, escreveu uma biografia a visse proibida
de circular, mas recebesse a notícia de que o biografado lhe pagaria uma
indenização em dinheiro, estaria resguardada a sua liberdade de
expressão? É evidente que não. A indenização nada resolve. O que a
Constituição garante é a liberdade de expressão, não é dinheiro em
pagamento pela violação a essa liberdade de expressão. O mesmo vale para
a privacidade.
A solução indenizatória, num sentido ou noutro,
desnivela a balança. Uma solução verdadeiramente equilibrada à luz do
texto constitucional seria a definição de limites recíprocos entre a
liberdade de expressão e o direito à privacidade. O Projeto de Lei
393/2011, que tramita no Congresso Nacional, poderia ser alterado para
instituir esses limites recíprocos, por exemplo, limitando a
possibilidade de concessão de liminares aos casos em que houvesse
fundado risco de divulgação de dados sigilosos – como aqueles detidos
apenas por médicos, advogados ou terapeutas – ou de divulgação dos
chamados dados sensíveis – assim entendidos aqueles que, embora não
sendo sigilosos, possam com sua revelação causar forte impacto emocional
sobre o biografado, como o detalhamento do sofrimento de crimes ou de
submissão à tortura, por exemplo. Para além do Projeto de Lei, o Supremo
Tribunal Federal também terá a chance de estabelecer parâmetros e
balizas para a colisão entre o direito à privacidade e a liberdade de
expressão, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815.
Uma solução equilibrada pode ser encontrada se a nossa Suprema Corte
conseguir escapar à miragem da indenização como via intermediária. Uma
verdadeira ponderação entre direitos fundamentais se faz necessária.