quinta-feira, 30 de junho de 2022

"A situação decorrente da pandemia pela Covid-19 não constitui fato superveniente apto a viabilizar a revisão judicial de contrato de prestação de serviços educacionais com a redução proporcional do valor das mensalidades"

 




Processo

REsp 1.998.206-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 14/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR

     
Tema

Inadimplemento contratual. Direito subjetivo da revisão contratual diante dos efeitos advindos da pandemia da Covid-19. Redução proporcional do valor das mensalidades escolares. Continuidade da prestação dos serviços. Equilíbrio econômico e financeiro. Inviabilidade na redução do valor da mensalidade.

DESTAQUE

A situação decorrente da pandemia pela Covid-19 não constitui fato superveniente apto a viabilizar a revisão judicial de contrato de prestação de serviços educacionais com a redução proporcional do valor das mensalidades.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A solução da controvérsia passa pela análise das regras e princípios em torno do inadimplemento contratual (ainda que parcial), sobretudo no âmbito das relações de consumo, indagando-se se, em tal cenário, se é possível ao consumidor invocar o direito subjetivo da revisão contratual diante dos efeitos advindos da pandemia da Covid-19, como fundamento para autorizar a redução proporcional do valor das mensalidades escolares.

Cabe anotar, inicialmente, que há consenso doutrinário no sentido de que as relações contratuais privadas são regidas, em linha de princípio, por três vertentes revisionistas, quais sejam a) teoria da base objetiva do contrato, aplicável, em regra às relações de consumo (art. 6º, inciso V, do CDC); b) a teoria da imprevisão (art. 317 do CC) e; c) a teoria da onerosidade excessiva (art. 478 do CC)

Para a revisão do contrato com base na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, previstas no CC, exige-se ainda que o fato (superveniente) seja imprevisível e extraordinário, e que deste fato, além do desequilíbrio econômico e financeiro, decorra situação de vantagem extrema para uma das partes, relacionando-se, portanto, à vedação do enriquecimento ilícito.

No caso da pandemia causada pelo coronavírus, dúvida não há quanto aos efeitos nefastos causados na economia mundial e nas relações privadas.

Considerando o arcabouço normativo sobre o tema, embora os efeitos decorrentes da pandemia revelem-se supervenientes e capazes de alterar as bases objetivas em que celebrado o contrato, não parece evidenciado o desequilíbrio excessivo na relação jurídica apta a autorizar a redução do valor das mensalidades.

Sobressai como ponto central a ideia de que a revisão dos contratos em razão da pandemia não consiste em decorrência lógica ou automática, devendo-se levar em conta, sobretudo, a natureza do contrato e a conduta, tanto no âmbito material como na esfera processual das partes envolvidas.

A análise do desequilíbrio econômico e financeiro deve ser realizada, portanto, com base no grau do desequilíbrio e nos ônus a serem suportados pelas partes, na específica situação de o evento superveniente não se encontrar na esfera de responsabilidade da atividade econômica do fornecedor, como ocorre no caso em análise.

Ademais, como visto, os princípios da função social dos contratos e da boa-fé, deverão ser sopesados com especial rigor, a fim de bem delimitar as hipóteses em que a onerosidade sobressai como fator de inviabilidade absoluta do negócio - situação que deve ser reequilibrada, tanto pelas como pelo Poder Judiciário - e aquelas que revelem ônus moderado ou mesmo situação de oportunismo para uma das partes.

Nesse contexto, embora os serviços não tenham sido prestados da forma como contratado, não há se falar em falha do dever de informação ou desequilíbrio econômico financeiro imoderado para a consumidora.

A mera alegação de redução de condições financeiras da recorrente, por sua vez, e o incremento dos gastos com serviços de tecnologia, não inviabilizaram a continuidade da prestação dos serviços.

A afirmação de que teria havido diminuição dos custos da escola, por outro lado, além de não se evidenciar como requisito à revisão com base na quebra da base objetiva do contrato, não é a tônica da revisão com fundamento na quebra da base objetiva do negócio, não se compatibiliza com os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, na especial conjuntura econômica e social que a todos assolava o país à época.

A diretriz da boa-fé deveria ser observada, portanto, especialmente quando os ônus suportados pelo consumidor não se revelaram desmesurados ou impeditivos do alcance da função do contrato.

É ainda a mesma diretriz responsável pela interpretação da situação da pandemia, no caso concreto, como hipótese de fortuito externo, apto a afastar a responsabilidade da escola.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

"Considera-se fortuito externo a queda de passageiro em via férrea de metrô, por decorrência de mal súbito, não ensejando o dever de reparação do dano por parte da concessionária de serviço público, mesmo considerando que não houve adoção, por parte do transportador, de tecnologia moderna para impedir o trágico evento"

 



Processo

REsp 1.936.743-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 14/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR


Tema

Responsabilidade civil objetiva. Concessionária de serviços públicos de transporte. Queda de passageiro em via férrea de metrô, por decorrência de mal súbito. Nexo de causalidade entre a conduta da concessionária e o evento danoso. Inexistência. Não adoção de tecnologia moderna "portas de plataforma" (Platform Screen Doors - PSD). Irrelevância. Caso fortuito externo caracterizado.

DESTAQUE

Considera-se fortuito externo a queda de passageiro em via férrea de metrô, por decorrência de mal súbito, não ensejando o dever de reparação do dano por parte da concessionária de serviço público, mesmo considerando que não houve adoção, por parte do transportador, de tecnologia moderna para impedir o trágico evento.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A questão controvertida principal consiste em saber se a queda de passageiro em via férrea de metrô, por decorrência de mal súbito, enseja o dever de reparar os danos, considerando que não houve adoção, por parte do transportador, de tecnologia moderna (portas de plataforma) para impedir o trágico evento.

No caso, e à luz da própria causa de pedir da demanda, é incontroverso que o lamentável e fatídico acidente decorre de caso fortuito (mal súbito, convulsão por epilepsia), consubstanciando fortuito externo que, segundo o curso normal das coisas, não se tinha como antever ou prevenir que a passageira caísse justamente na linha férrea.

Na hipótese em exame, a presença de funcionário na estação, não teria o condão de evitar o acidente, por não ser factível que estivesse ao lado de cada um dos passageiros, ainda mais de passageira jovem, de apenas 29 anos de idade, que, em linha de princípio, não estaria a precisar de nenhum auxílio específico para ingressar na composição do metrô.

Segundo a doutrina, o fato de tratar-se de responsabilidade objetiva "não elimina a necessidade de demonstrar-se a presença do dano e do nexo causal entre o dano e a qualidade de agente público do autor do dano, ou a conexão com a prestação do serviço público. Desse modo, as situações que servem para afastar o nexo de causalidade, como o caso fortuito, a força maior, a culpa exclusiva da vítima e a culpa exclusiva de terceiro, da mesma forma servem para exonerar a responsabilidade do Estado pelos danos sofridos por particulares. Não basta, assim, que haja falha de conduta atribuível ao Estado ou a seus agentes. É necessário que se verifique no processo causal, claramente, a relação entre a atuação atribuída ao Estado e o dano do que se reclama indenização".

O nexo de causalidade é o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato.

Não há, portanto, no caso, como considerar, à luz da teoria da causalidade adequada, a conduta da ré causa específica e determinante para o evento danoso, pois o risco de a passageira cair na linha férrea, sem que seja por fatores ligados à própria organização do serviço (v.g. tropeço pelo piso estar molhado ou escorregadio, tumulto por desorganização no embarque e desembarque da composição), é fortuito externo, isto é, risco não está abrangido pela esfera imputável objetivamente à concessionária de serviço público.

Ademais, não é compatível com o CDC o entendimento de que há um "dever específico de prevenir o evento letal por todos os meios de que possa conceber o conhecimento humano e de que esteja à sua altura fazê-lo e desde que ainda não seja caso de impossibilidade material".

O defeito a que alude o art. 14, § 1º, do CDC consubstancia-se em falha que se desvia da normalidade, capaz de gerar uma frustração no consumidor ao não experimentar a segurança que ordinariamente se espera do produto ou serviço.

Assim, o defeito previsto no artigo não pode dizer respeito a um risco inerente do serviço ou produto de gerar danos, presente na generalidade dos transportes públicos que utilizam do mesmo modal, mas a algo que escapa do razoável, discrepante do padrão de outros serviços congêneres ou de outros exemplares do mesmo produto.

Além do mais, como máxima de experiência, não é a regra que trens de metrôs, inclusive em países com altíssimo nível de desenvolvimento econômico e social, tenham as denominadas "portas de plataforma" (Platform Screen Doors - PSD).

O recente art. 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, incluído pela Lei n. 13.655/2018, explicitou o dever do magistrado de considerar as consequências práticas da decisão.

Ao considerar o serviço defeituoso, estar-se-ia tacitamente a impor o dever, em violação da tripartição de poderes, de a Companhia instalar imediatamente a tecnologia mais moderna de segurança, sem qualquer necessário criterioso exame das repercussões econômicas e dos efeitos externos da decisão, como eventual abrupto aumento do preço da tarifa de transporte.

Mutatis mutandis, o Enunciado n. 446, da V Jornada de Direito Civil do CJF, propõe que a responsabilidade civil prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do CC deve levar em consideração não apenas a proteção da vítima e a atividade do ofensor, mas também a prevenção e o interesse da sociedade.

Por último, cumpre consignar que o caso não guarda nenhuma relação com aquele julgado pela Segunda Seção, em sede de recurso repetitivo, REsp 1.210.064/SP, Tema n. 517.

Isso porque não se trata de "omissão ou negligência do dever de vedação física das faixas de domínio da ferrovia com muros e cercas bem como da sinalização e da fiscalização dessas medidas garantidoras da segurança na circulação da população", imposta por regulação do serviço público, em que o transeunte, de fato, seguindo o curso normal das coisas, inequivocamente pode vir a ser surpreendido e atropelado pela composição.

Na verdade, quanto à questão das portas de plataforma, que por ora ainda não são usuais na maioria dos metrôs, a questão é diferente, pois o acidente ocorreu bem no momento em que a composição se alinhava à estação e, como é de sabença, nas estações de metrô há faixa amarela de segurança, paralela à via férrea (atrás da qual, no mínimo, devem permanecer os usuários, ainda mais sentindo incontroverso mal-estar), sendo certo que a aproximação do usuário da composição/linha férrea deve ocorrer apenas após o efetivo alinhamento da composição à estação, seguido de abertura de portas do trem e, em regra, de aviso sonoro.

Portanto, cabe ressalvar que o caso é diverso daquele que foi solucionado pelo recurso repetitivo, e que não se adota o fundamento de culpa exclusiva da vítima da sentença, mas de fortuito externo, sem relação de causa e efeito com a organização do serviço


terça-feira, 28 de junho de 2022

"Nos contratos de seguro, o valor de indenização a ser recebido na hipótese de ocorrência do evento segurado é estabelecido previamente no contrato e, por isso, não há a "guarda" dos prêmios"

 


TERCEIRA TURMA
Processo

REsp 1.738.657-DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 14/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

     
Tema

Contrato de seguro de vida. Administração de bens ou interesses de terceiros. Não ocorrência. Ausência de interesse processual.

DESTAQUE

Nos contratos de seguro, o valor de indenização a ser recebido na hipótese de ocorrência do evento segurado é estabelecido previamente no contrato e, por isso, não há a "guarda" dos prêmios.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Esta Corte, desde há muito, compreende que aquele que administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da administração, do mesmo modo que aquele que tenha seus bens ou interesses administrados por outrem tem direito a exigir as contas correspondentes à gestão (REsp 1.561.427/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, DJe 2/4/2018).

Nos seguros de vida, o valor de indenização a ser recebido na hipótese de ocorrência do evento segurado é estabelecido previamente no contrato e, por isso, não há a "guarda" dos valores produtos da arrecadação, ou seja, dos prêmios.

Nesse cenário, de fato, falta ao segurado, bem como ao eventual beneficiário, interesse processual para promover a ação de exigir contas decorrente do contrato de seguro porque, nessa hipótese, tratando-se de negócio aleatório, falta à pretensão a premissa fática essencial, qual seja, a existência da administração de bens ou interesses de terceiros.

Por conseguinte, não é devida a prestação de contas em relação ao valor recebido pela segurada, a título do evento saúde, que a afastou de suas atividades laborais.

Em outras palavras , não é o caso de exigir a prestação de contas dos valores recebidos da seguradora, tendo em vista que a sua obrigação jamais foi a de investir ou administrar o valor recebido, mas sim o de pagar ao segurado, quando do evento "saúde", o valor previamente delineado na apólice.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

"A) É presumido, em regra, o rateio em partes iguais do numerário mantido em conta corrente conjunta solidária quando inexistente previsão legal ou contratual de responsabilidade solidária dos correntistas pelo pagamento de dívida imputada a um deles. B) Não será possível a penhora da integralidade do saldo existente em conta conjunta solidária no âmbito de execução movida por pessoa (física ou jurídica) distinta da instituição financeira mantenedora, sendo franqueada aos cotitulares e ao exequente a oportunidade de demonstrar os valores que integram o patrimônio de cada um, a fim de afastar a presunção relativa de rateio"

 


INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA
Processo

REsp 1.610.844-BA, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 15/06/2022. (Tema IAC 12)

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

      
Tema

Penhora de saldo em conta corrente conjunta. Extensão. Presunção relativa de rateio em partes iguais. Integralidade dos valores. Pessoa física ou jurídica distinta da instituição financeira mantenedora. Demonstração dos valores que integram o patrimônio de cada um. (Tema IAC 12/STJ).

DESTAQUE

A) É presumido, em regra, o rateio em partes iguais do numerário mantido em conta corrente conjunta solidária quando inexistente previsão legal ou contratual de responsabilidade solidária dos correntistas pelo pagamento de dívida imputada a um deles.

B) Não será possível a penhora da integralidade do saldo existente em conta conjunta solidária no âmbito de execução movida por pessoa (física ou jurídica) distinta da instituição financeira mantenedora, sendo franqueada aos cotitulares e ao exequente a oportunidade de demonstrar os valores que integram o patrimônio de cada um, a fim de afastar a presunção relativa de rateio.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A controvérsia está em definir a possibilidade ou não de penhora integral de valores depositados em conta bancária conjunta, na hipótese de apenas um dos titulares ser sujeito passivo de processo executivo movido por pessoa - física ou jurídica - distinta da instituição financeira mantenedora da conta corrente.

Há divergência atual entre julgados das Turmas de Direito Privado e de Direito Público sobre o tema que envolve, basicamente, a interpretação da norma inserta no artigo 265 do Código Civil, segundo o qual "a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes".

Com efeito, os precedentes das Turmas da Primeira Seção assentam que, ainda que só um dos titulares da conta conjunta seja responsável pela dívida executada, a penhora deve atingir a integralidade do saldo depositado se não houver prova da titularidade exclusiva ou parcial dos valores, ante a presunção de que os co-correntistas pactuaram a ausência de exclusividade da disponibilidade do numerário.

Por sua vez, os acórdãos das Turmas da Segunda Seção adotam a exegese de que, em se tratando de execução movida por pessoa (física ou jurídica) distinta da instituição financeira mantenedora da conta bancária coletiva, deve ser franqueada aos cotitulares a comprovação dos valores que integram o patrimônio de cada um, sendo certo que, na ausência de provas nesse sentido, presume-se a divisão do saldo em partes iguais, razão pela qual a penhora não poderá atingir a integralidade do numerário, mas apenas a cota-parte do correntista executado.

O exercício do aludido poder-dever do juiz - no âmbito da execução forçada direta - encontra limite político no princípio da responsabilidade patrimonial, enunciado nos arts. 591 e 592 do CPC/1973 (reproduzidos nos arts. 789 e 790 de CPC/2015), que versam sobre a sujeição dos bens do "devedor obrigado" (responsabilidade primária) e do "terceiro não obrigado" (responsabilidade secundária) à demanda executória.

Depreende-se que, em regra, somente os bens integrantes do patrimônio do devedor - a um só tempo obrigado e responsável - estão sujeitos à excussão destinada a obter soma em dinheiro apta ao adimplemento da prestação (pecuniária ou de dar coisa) encartada em título judicial ou extrajudicial.

A conta-corrente configura instrumento contratual que viabiliza outras operações bancárias, a exemplo do depósito, do empréstimo e da abertura de crédito. Tal contrato bancário alberga duas espécies: (i) a conta-corrente individual ou unipessoal, que possui um único titular, detentor do poder de movimentá-la, o qual pode ser outorgado a procurador devidamente constituído; e (ii) a conta-corrente conjunta ou coletiva, na qual há mais de um titular com poder de movimentação da conta.

Em se tratando de "conta conjunta solidária", sobressai a solidariedade ativa e passiva na relação jurídica estabelecida entre os cotitulares e a instituição financeira mantenedora, o que decorre diretamente das obrigações encartadas no contrato de conta-corrente, em consonância com a regra estabelecida no art. 265 do CC/2002.

Por outro lado, a obrigação pecuniária assumida por um dos correntistas perante terceiros não poderá repercutir na esfera patrimonial do cotitular da "conta conjunta solidária", caso inexistente disposição legal ou contratual atribuindo responsabilidade solidária pelo pagamento da dívida executada.

Nessa perspectiva, há julgados desta Corte que, com base na Lei n. 7.357/1985, entendem que os cotitulares da aludida espécie de conta conjunta não ostentam a condição de devedores solidários nem sequer perante terceiros portadores de cheques emitidos, sem provisão de fundos, somente por um dos correntistas.

Nessa ordem de ideias, infere-se que o saldo mantido na chamada "conta conjunta solidária" caracteriza bem divisível, cuja cotitularidade, nos termos de precedentes desta Corte, atrai as regras atinentes ao condomínio, motivo pelo qual se presume a repartição do numerário em partes iguais entre os correntistas quando não houver elemento probatório a indicar o contrário, consoante disposto no parágrafo único do art. 1.315 do CC/2022 (REsp n. 819.327/SP, relator Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma, DJ de 08/05/2006).

Consequentemente, à luz do princípio da responsabilidade patrimonial do devedor - enunciado nos arts. 591 e 592 do CPC/1973 (reproduzidos nos arts. 789 e 790 do CPC/2015) -, a penhora eletrônica de saldo existente em "conta conjunta solidária" não poderá abranger proporção maior que o numerário pertencente ao devedor executado, devendo ser preservada a cota-parte dos demais correntistas.

Sob tal ótica, por força da presunção do rateio igualitário do saldo constante da "conta coletiva solidária", caberá ao "cotitular não devedor" comprovar que o montante que integra o seu patrimônio exclusivo ultrapassa o quantum presumido. De outro lado, poderá o exequente demonstrar que o devedor executado é quem detém a propriedade exclusiva - ou em maior proporção - dos valores depositados na conta conjunta.

Desse modo, quando existente prova de titularidade exclusiva dos valores depositados por aquele que não figura no polo passivo da execução de obrigação pecuniária não solidária, afigurar-se-á impositiva a desconstituição da penhora.

domingo, 26 de junho de 2022

Indicação de livro: "Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo", de Eduardo Nunes de Souza

 


"Tão tradicionais são seus contornos, e tão precisa parece ser sua aplicação, que a teoria das invalidades negociais tende a assumir ares de uma lei imutável, quase natural. Não são raros, porém, os casos em que a aplicação mecânica das normas sobre nulidade ou anulabilidade conduziria à violação de valores tão caros à ordem jurídica quanto a tutela da pessoa humana, a boa-fé objetiva, a vedação ao enriquecimento sem causa ou a segurança jurídica. A partir de cada caso concreto, doutrina e jurisprudência têm empreendido um trabalho diuturno e silencioso de reconstrução desse sistema, o que acabou por convertê-lo em um mar de exceções à regra. Esta obra parte da desconstrução dos planos de análise do ato jurídico para demonstrar que a validade se resume a um problema de eficácia. Propõe-se, assim, a modulação dos efeitos do ato inválido à luz dos valores relevantes no caso concreto, em perspectiva funcional inerente à escola civil-constitucional. O leitor que sempre tenha julgado excessivamente rígido o regime da invalidade, ou a técnicas as soluções tópicas forjadas para a superação dessa rigidez, encontrará nesta obra um caminho e uma proposta de sistematização do tema."

https://www.almedina.com.br/produto/teoria-geral-das-invalidades-do-negocio-juridico-305

sábado, 25 de junho de 2022

"Ação de retificação de assento civil Prenome Constrangimento Comprovação Mutabilidade do nome Provimento do recurso"

 


Apelação cível. Direito civil. Ação de retificação de assento civil. Procedimento de jurisdição voluntária. Requerimento de alteração de prenome por alegado constrangimento. Sentença de improcedência. Inconformismo. 1. O nome é um direito essencial do indivíduo, que integra os direitos da personalidade, exercendo as funções precípuas de individualização e identificação das pessoas nas relações de direitos e obrigações desenvolvidas em sociedade. 2. Requerente idoso, com 60 anos de idade, que nasceu no interior no Nordeste e foi registrado aos 17 anos com o prenome Domingos, sendo negado pelo pai a escolha de outro nome. Relata situações de zombaria e constrangimentos desde a infância que se perpetuaram na vida adulta. 3. Autor que busca atendimento pelo SUS, concluindo o psicólogo pela insuportabilidade da situação fática para o requerente, fato corroborado no parecer psicológico da equipe técnica de confiança do juízo (ETIC), no sentido de que ele não se reconhece como Domingos. 4. A escolha do nome é delegada aos pais, mas não é retirada do próprio indivíduo, sendo direito potestativo a alteração do nome após a maioridade civil, no prazo decadencial de um ano. Inteligência do art. 56, da lei 6.015/73. 5. O nome civil era regido pelo princípio da imutabilidade, conforme redação original do art. 59, da Lei 6.015/73, sendo certo que, com as alterações da Lei 9.708/98, o novo artigo 58, passou a prever que o nome será definitivo e não mais imutável. 6. Sucessivas alterações do ordenamento jurídico e novas interpretações jurisprudenciais paulatinamente relativizaram o princípio da imutabilidade, inaugurando uma inversão das diretrizes a serem seguidas, de modo que vigora atualmente a mutabilidade do nome civil, desde que observadas questões de ordem pública e segurança jurídica. 7. Incidência do artigo 55, p. único, da lei 6.015/73. Embora o nome "Domingos" seja comumente adotado e, abstratamente, não exponha a pessoa ao ridículo, a prova dos autos denota que as situações vexatórias e o constrangimento experimentados partem de interpretação do próprio requerente quanto ao seu prenome, não se podendo menosprezar o sentimento pessoal e as repercussões psicológicas advindas dos episódios narrados. 8. Em procedimentos de jurisdição voluntária, o julgador pode adotar a solução que considerar mais conveniente, considerando as peculiaridades do caso concreto, o que nos conduz inegavelmente a autorizar a modificação do prenome pleiteada. Art. 723, pu, do CPC. 9. Interpretação histórico-evolutiva do princípio da imutabilidade do nome que resulta na prevalência da autonomia privada, com vistas ao pleno exercício dos direitos da personalidade e do direito à identidade. 10. Em matéria de direitos da personalidade, na ponderação de princípios entre segurança jurídica e autonomia privada, esta deve ser considerada com primazia quando não estiver em risco a segurança jurídica ou a ordem pública. No caso concreto, ganha relevo observar que todas as certidões do requerente foram negativas e o apelante continuará sendo identificado pelo número do seu CPF perante cadastros públicos e privados, malgrado tenha o seu prenome modificado. 11. Incidência, outrossim, do artigo 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU). 12. Desta feita, o caso é de reforma da sentença para julgar procedente o pedido, determinando-se a expedição de ofício ao RCPN para proceder a alteração do prenome do requerente para Guilherme. 13. Reforma da sentença. Provimento do recurso.

 

 

0017690-09.2019.8.19.0087 - Apelação

Décima Sexta Câmara Cível

Des(a). Marco Aurélio Bezerra de Melo - Julg: 19/04/2022 - Data de Publicação: 27/05/2022


sexta-feira, 24 de junho de 2022

"Transporte coletivo Criança presa junto à porta de desembarque Dano moral in re ipsa"

 


Apelação Cível. Ação indenizatória. Danos morais. Transporte coletivo. BRT. Hipótese na qual menor, prima e sobrinha dos autores, ficou presa pelo braço, junto à porta de desembarque, do lado de fora de composição do BRT, durante o percurso entre duas estações. Motorista que de início se recusou a parar a composição para o resgate da pequena. Sentença de procedência parcial do pedido. Recurso de apelação da 1ª ré pretendendo o julgamento de improcedência do pedido ou, alternativamente, a redução da verba indenizatória fixada. Recurso da parte autora pretendendo a majoração das indenizações arbitradas. Evento danoso cuja ocorrência não é negada pelas rés. Responsabilidade objetiva. Artigo 37, § 6º da Constituição Federal. Passageira menor de idade (a vítima direta) que desembarca sozinha de veículo coletivo, sem a assistência dos adultos que a acompanhavam. Concorrência de culpas. Dano moral in re ipsa. Quanto ao 1º autor, presente no momento do evento, o dano transborda a individualidade da vítima (sua prima), refletindo seus efeitos ao familiar. Dano reflexo ou por ricochete. Redução da indenização fixada ao 1ª autor. Súmula 343 do TJRJ. Improcedência do pedido quanto à 2º autora, mãe do 1º autor, ausente no momento do evento e que dele só tomou conhecimento posteriormente. Sentença parcialmente reformada. 1º recurso parcialmente provido (1ª ré), prejudicado o 2º apelo.

 

 

0495655-04.2015.8.19.0001 - Apelação

Quarta Câmara Cível

Des(a). Marco Antonio Ibrahim - Julg: 09/03/2022 - Data de Publicação: 11/03/2022


quinta-feira, 23 de junho de 2022

"Plano de saúde Medicamento à base de cannabis Autorização de importação pela anvisa Exclusão de cobertura Conduta abusiva Dano moral"

 


Direito do consumidor. Plano de saúde. Pretensão de fornecimento de medicamento à base de Cannabis. Autora que tem quadro de "encefalopatia crônica não progressiva (paralisia cerebral) do tipo tetraparesia espástica, além de déficit cognitivo e epilepsia de difícil controle". Autorização da ANVISA excepcional e exclusiva para a agravante de importação do medicamento. Recente regulamentação da ANVISA para importação, fabricação, comercialização de produtos de Cannabis para fins medicinais. Resolução RDC Nº 327, de 09/12/2019. Diante da regulamentação pela ANVISA, a operadora de plano de saúde deve arcar com o custeio do tratamento com o medicamento indicado pelo médico responsável pela paciente. Tema nº 990 do STJ que não se aplica ao caso. Precedente do STJ aplicando a técnica da distinção entre o precedente vinculante e hipótese idêntica ao caso dos autos. Alegada exclusão de cobertura contratual por não estar listado no rol da ANS. Conduta abusiva. Contradição entre cláusulas que não pode ser interpretada em desfavor do consumidor. Abusividade na exclusão de custeio dos meios e materiais necessários ao melhor desempenho do tratamento da doença coberta pelo plano. Escolha do tratamento mais adequado para o tratamento da patologia sofrida pela paciente que cabe ao profissional responsável. Enunciados nº 211 e 340 da súmula do TJRJ. Dano moral configurado. Valor da condenação corretamente fixado em R$ 10.000,00. Recurso desprovido.

 

 

0014117-69.2020.8.19.0202 - Apelação

Segunda Câmara Cível

Des(a). Alexandre Antonio Franco Freitas Câmara - Julg: 13/04/2022 - Data de Publicação: 19/04/2022


quarta-feira, 22 de junho de 2022

"A negociação do passe de um atleta de futebol específico é uma obrigação de natureza infungível e de execução específica, não podendo ser utilizada para compensação privada de créditos em operações de câmbio"

 


PRIMEIRA TURMA
Processo

REsp 1.937.846-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, por maioria, julgado em 07/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO CIVIL


Tema

Operação de câmbio. Compensação privada. Negociação. Transferência de passe de atleta de futebol. Obrigação infungível. Natureza específica. Impossibilidade. Art. 10 do Decreto-Lei n. 9.025/1976.

DESTAQUE

A negociação do passe de um atleta de futebol específico é uma obrigação de natureza infungível e de execução específica, não podendo ser utilizada para compensação privada de créditos em operações de câmbio.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Na hipótese, o clube esportivo ingressou com ação em face do Banco Central do Brasil, buscando anular decisão administrativa que determinou a imposição de multa.

O Banco Central do Brasil (BACEN), por meio de processo administrativo, concluiu pela existência de irregularidades em negociação de passe de atletas e excursões realizadas pela equipe de futebol profissional. Tais irregularidades estariam consubstanciadas nas Operações ilegítimas de câmbio, nos termos do art. 1º do Decreto n. 23.258/1933, decorrente da falta de comprovação da regular negociação da moeda estrangeira em estabelecimento autorizado a operar em câmbio no país e na compensação privada de créditos relativamente à aquisição de atleta, nos termos do art. 10 do Decreto-Lei n. 9.025/1946, uma vez que configurada administrativamente a compensação privada de créditos quando da negociação do passe de atleta de futebol com o outro clube esportivo.

No que tange à primeira irregularidade encontrada pelo BACEN, o acórdão proferido pelo Tribunal de origem está em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, firmada no sentido de que o Decreto n. 23.258/1933 foi recepcionado como lei e, por isso, não poderia ser revogado pelo Decreto s/n. editado em 1991.

No que tange à segunda irregularidade encontrada pelo BACEN, a compensação, nos termos do art. 369 do CC/2002, diz respeito a coisas fungíveis, que se compensam em um contexto de dívidas líquidas e vencidas.

Na hipótese, a negociação do passe de um atleta de futebol não se enquadra em uma obrigação cujo objeto é fungível; pelo contrário, a prestação consistente em transferir o passe de um atleta de futebol específico é, por essência, uma obrigação de natureza infungível e de execução específica.

Portanto, com razão o afastamento da configuração do instituto jurídico da compensação, na hipótese. Desse modo, não merece procedência a pretensão em configurar a aplicabilidade do art. 10 do Decreto-Lei n. 9.025/1976.

terça-feira, 21 de junho de 2022

"O rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo"

 


SEGUNDA SEÇÃO
Processo

EREsp 1.886.929-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, por maioria, julgado em 08/06/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO DO CONSUMIDOR

      
Tema

Agência Nacional de Saúde Suplementar. Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar. Taxatividade. Operadora de plano ou seguro de saúde. Tratamento não constante do Rol da ANS. Não obrigatoriedade. Admissão em hipóteses excepcionais e restritas.

DESTAQUE

1 - O rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo;

2 - A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;

3 - É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;

4 - Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da Saúde Suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como CONITEC e NATJUS) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

É notória a existência de posicionamentos antagônicos entre as duas Turmas integrantes da Segunda Seção: enquanto a Terceira Turma reafirmou ser o rol de procedimentos em Saúde, previsto em lei e editado pela ANS, de caráter meramente exemplificativo (caso ora analisado em julgamento), a Quarta Turma, a partir do julgado apontado como paradigma (REsp 1.733.013/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020), após acurado exame do tema com participação de diversos amici curiae, passou a reconhecer o rol como taxativo, salvo situações excepcionais em que, após devida instrução processual, o Juízo imponha determinada cobertura que se apure ser efetivamente imprescindível a garantir a saúde do beneficiário.

Com efeito, resguardado o núcleo essencial do direito fundamental, no tocante à saúde suplementar, são, sobretudo, a Lei n. 9.656/1998, a Lei n. 9.961/2000 e os atos regulamentares infralegais da ANS e do Conselho de Saúde Suplementar, expressamente prestigiados por disposições legais infraconstitucionais, que, representando inequivocamente forte intervenção estatal na relação contratual de direito privado (planos e seguros de saúde), conferem densidade normativa ao direito constitucional à saúde.

Cabe menção também ao art. 35-G da Lei n. 9.656/1988, incluído pela MP n. 2.177-44/2001, o qual estabelece que as disposições do CDC se aplicam subsidiariamente aos contratos entre usuários e operadoras de produtos a que se referem o inciso I e o parágrafo 1º do art. 1º da mesma Lei.

Nos termos do art. 1º da Lei n. 9.656/1998, os planos privados de assistência à saúde consistem em prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós-estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando à assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor.

Destarte, por clara opção do legislador, extrai-se do art. 10, § 4º, da Lei n. 9.656/1998, c/c o art. 4º, III, da Lei n. 9.961/2000, que é atribuição da ANS elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei dos Planos e Seguros de Saúde.

A vigente Medida Provisória n. 1.067, de 2 de setembro de 2021, altera o art. 10º da Lei n. 9.656/1998 para, uma vez mais, explicitar que, a amplitude da cobertura legal no âmbito da Saúde Suplementar, será estabelecida em norma editada pela ANS (rol) e sua atualização a cada 120 dias.

É importante salientar que, deixando nítido que não há o dever de fornecer toda e quaisquer cobertura vindicada pelos usuários dos planos de saúde, ao encontro das mencionadas Resoluções Normativas ANS, a já mencionada Medida Provisória n. 1.067, de 2 de setembro de 2021, incluiu o art. 10-D, § 3º, I, II e III, na Lei n. 9.656/1998.

Por um lado, não se pode deixar de observar que o rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em saúde constitui relevante garantia do consumidor para assegurar direito à saúde, em preços acessíveis, contemplando a camada mais ampla e vulnerável da população. Por conseguinte, considerar esse mesmo rol meramente exemplificativo representaria, na verdade, negar a própria existência do "rol mínimo" e, reflexamente, negar acesso à saúde suplementar à mais extensa faixa da população. Lamentavelmente, salvo os planos de saúde coletivo empresariais, subvencionados pelo próprio empregador, em regra, os planos de saúde, hoje em dia, são acessíveis apenas às classes média alta e alta da população.

Por outro lado, esse entendimento de que o rol (ato estatal, com expressa previsão legal e imperatividade inerente, que vincula fornecedores e consumidores) é meramente exemplificativo, malgrado, a toda evidência, seja ato de direito administrativo, e não do fornecedor de serviços - devendo, ademais, a cobertura mínima, paradoxalmente, não ter limitações definidas -, tem o condão de efetivamente padronizar todos planos de saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito para garantir a saúde ou a vida do segurado.

A submissão ao rol da ANS, a toda evidência, não privilegia nenhuma das partes da relação contratual, pois é solução concebida e estabelecida pelo próprio legislador para harmonização da relação contratual.

É importante pontuar que não cabe ao Judiciário se substituir ao legislador, violando a tripartição de poderes e suprimindo a atribuição legal da ANS ou mesmo efetuando juízos morais e éticos, não competindo ao magistrado a imposição dos próprios valores de modo a submeter o jurisdicionado a amplo subjetivismo.

Observa-se que as técnicas de interpretação do Código de Defesa do Consumidor devem levar em conta o art. 4º daquele diploma, que contém uma espécie de lente através da qual devem ser examinados os demais dispositivos, notadamente por estabelecer os objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo e os princípios que devem ser respeitados, entre os quais se destacam, no que interessa ao caso concreto, a "harmonia das relações de consumo" e o "equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores".

Na verdade, o contrato de assistência à saúde põe em confronto dois valores antagônicos. De um lado, a operação econômica, cujo equilíbrio deve ser preservado como meio de assegurar a utilidade do contrato (a assistência prometida). De outro lado, o interesse material do consumidor na preservação da sua saúde

Nesse rumo, é digno de registro que a uníssona doutrina especializada e a majoritária consumerista alertam para a necessidade de não se inviabilizar a saúde suplementar, realçando que "uma das grandes dificuldades em relação ao contrato de seguro e planos de assistência à saúde diz respeito à manutenção do equilíbrio das prestações no tempo".

A disciplina contratual "exige uma adequada divisão de ônus e benefícios, na linha de que os estudos sobre contratos relacionais no Brasil vêm desenvolvendo, dos sujeitos como parte de uma mesma comunidade de interesses, objetivos e padrões. Isso terá de ser observado tanto em relação à transferência e distribuição adequada dos riscos quanto na identificação de deveres específicos ao fornecedor para assegurar a sustentabilidade, gerindo custos de forma racional e prudente".

Conclui-se que, se fosse o rol da ANS meramente exemplificativo, desvirtuar-se-ia sua função precípua, não se podendo definir o preço da cobertura diante de lista de procedimentos indefinida ou flexível. O prejuízo para o consumidor seria inevitável, já que, caso desrespeitada a regulação incidente, de duas uma: ou sobrecarregam-se os usuários com o consequente repasse dos custos ao preço final do serviço, impedindo maior acesso da população - sobretudo os mais vulneráveis economicamente - ao Sistema de Saúde Suplementar, ou inviabiliza-se a atividade econômica desenvolvida pelas operadoras e seguradoras.

Logo, propõem-se, para a matéria controvertida sob exame, os seguintes critérios:

1 - o rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo;

2 - a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;

3 - é possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;

4 - não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da Saúde Suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como CONITEC e NATJUS) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

"É válida a penhora do bem de família de fiador apontado em contrato de locação de imóvel, seja residencial, seja comercial, nos termos do inciso VII, do art. 3º da Lei n. 8.009/1990"

 


Processo

REsp 1.822.040-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 08/06/2022. (Tema 1091)

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL


Tema

Execução. Lei n. 8.009/1990. Alegação de bem de família. Fiador em contrato de locação comercial e residencial. Penhorabilidade do imóvel. Possibilidade. Tema 1091.

DESTAQUE

É válida a penhora do bem de família de fiador apontado em contrato de locação de imóvel, seja residencial, seja comercial, nos termos do inciso VII, do art. 3º da Lei n. 8.009/1990.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O STF, no julgamento do RE 612.360/SP (Rel. Ministra Ellen Gracie, DJe de 3/9/2010), reconhecida a repercussão geral (Tema 295), afirmou a seguinte tese: "É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000". Importante pontuar que no caso objeto de julgamento se tratava de locação comercial.

Logo após, o STJ, na alçada dos recursos repetitivos, decidiu a tese de que "é legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990" (REsp 1.363.368/MS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, DJe de 21/11/2014).

Temática que ensejou a edição, em 2015, da Súmula 549 pelo STJ, segundo a qual "é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação".

Nota-se que os referidos precedentes não fizeram distinção, para fins de constrição judicial, entre o contrato de fiança atrelado a locação residencial ou não residencial, surgindo a dúvida sobre a incidência de tal posicionamento nos locatícios comerciais.

Nesse passo, em 2018, sobreveio o julgamento, pela Primeira Turma do STF, do RE 605.709/SP que, ao apreciar a alegação de impenhorabilidade do bem de família do fiador de contrato de "locação comercial", visualizou distinguishing apto a afastar a incidência da solidificada jurisprudência das Cortes Superiores.

Naquela oportunidade, a maioria dos Ministros da Primeira Turma do STF decidiu que o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, não poderia ser sacrificado a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa.

Conforme se depreende do voto condutor, a adoção de exegese contrária ofenderia o princípio da isonomia, pois o fato de eventual bem de família do locatário/afiançado (na locação comercial) não se submeter à penhora configuraria situação mais gravosa ao fiador (garante), já que não haveria a justificativa de promoção do direito fundamental à moradia (do locatário).

Destacou-se, ainda, a existência de instrumentos outros suscetíveis de viabilizar a garantia da satisfação do crédito do locador de imóvel comercial, a exemplo da caução, seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento (art. 37 da Lei n. 8.245/1991). Em conclusão, afirmou-se que "admitir a penhora de bem de família para satisfazer débito decorrente de locação comercial, em nome da promoção da livre iniciativa, redundaria, no limite, em solapar todo o arcabouço erigido para preservar a dignidade humana em face de dívidas".

Recentemente, a Suprema Corte julgou o mérito do Recurso Extraordinário, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, definido pela constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação comercial.

Portanto, a Tese definida no Tema 1127 foi a de que "é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial".

Nessa perspectiva, a Segunda Seção do STJ, assim como o fez o STF, deve aprimorar os enunciados definidos no REsp Repetitivo 1.363.368/MS e na Súmula 549 para reconhecer a validade da penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação comercial.

Isso porque a lei não distinguiu entre os contratos de locação para fins de afastamento do bem de família, (art. 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990).

Como bem pontuado pelo Min. Alexandre de Moraes em seu voto condutor, não é possível criar distinção onde a lei não distinguiu, pois haveria "flagrante violação ao princípio da isonomia relacionada ao instituto da fiança, haja a vista que o fiador de locação comercial, embora também excepcionado pelo artigo 3º, VII, teria incólume o seu bem de família, ao passo que o fiador de locação residencial poderia ter seu imóvel penhorado. Teríamos uma diferenciação não prevista por lei e sem diferenciação, a meu ver, principiológica que a embase".

Ao que parece, se realmente fosse para conferir algum tipo de proteção com base na igualdade, esta seria o de salvaguardar o fiador que deu o seu imóvel para proteger o direito fundamental à moradia do locador residencial e não o de socorrer aquele fiador que espontaneamente afiançou negócio jurídico voltado a promover o comércio.

Ademais, verifica-se que remanesce a premissa dos antigos precedentes que reconheceram a constitucionalidade e a legalidade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação residencial, por haver prevalência ao princípio da autonomia de vontade e ao direito de propriedade, atraindo, assim, a incidência do velho brocardo latino: ubi eadem ratio , ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito.

Deveras, o fiador, no pleno exercício de seu direito de propriedade de usar, gozar e dispor da coisa (CC, art. 1.228), pode afiançar, por escrito (CC, art. 819), o contrato de locação (residencial ou comercial), abrindo mão da impenhorabilidade do seu bem de família, por sua livre e espontânea vontade, no âmbito de sua autonomia privada, de sua autodeterminação. Aliás, "admitir o contrário se constituiria, a um só tempo, clara violação do princípio da boa-fé objetiva" (RE 1.303.711, Rel. Min. Nunes Marques, Dje de 19/3/2021).

Não se pode olvidar que entender de forma diversa (reconhecendo a impenhorabilidade do imóvel do fiador) acabaria por ensejar grave impacto na liberdade de empreender do locatário e no direito de propriedade do fiador, notadamente porque a fiança é sabidamente a garantia menos custosa e a mais aceita pelos locadores. Afastar a proteção do bem de família foi o instrumento jurídico de políticas públicas que o Estado se valeu para enfrentar o problema público da ausência de moradia e de fomento da atividade empresarial decorrente das dificuldades impostas aos contratos de locação.

Ademais, por uma análise econômica do direito, a interpretação que afasta a garantia fiduciária da locação comercial, mais precisamente a possibilidade de penhora do imóvel do fiador, muito provavelmente acabará retirando a eficiência do mercado imobiliário de locações para fins de exercício de atividade econômica, influindo nas leis da oferta e da procura, já que haverá um aumento no custo do contrato, reduzindo o número de possíveis locatários com poder de locação, diminuindo a riqueza e o bem-estar, com o aumento do custo social, por reduzir o empreendedorismo, a oferta de empregos e, consequentemente, a renda da população.