Apelação cível. Direito do consumidor. Plano de saúde. Ação de obrigação de fazer c/c indenizatória por dano moral. Autora portadora de incongruência de gênero. Negativa de cobertura dos procedimentos que integram a cirurgia de transgenitalização ou redesignação sexual. Sentença de procedência. Apelo do réu. Autos remetidos pelo superior tribunal de justiça determinando novo exame do recurso de apelação, quanto ao preenchimento dos requisitos para o deferimento excepcional da cobertura reivindicada pela segurada, delineados pela segunda seção do STJ. A parte autora convive com a incompatibilidade entre o sexo biológico e a identidade sexual na qual se reconhece emocional e psicologicamente e desde 24/04/2014 passa por tratamento com equipe multidisciplinar visando a melhora de seu estado de saúde. Apesar de sua condição genética e anatômica masculina, exerce a identidade de gênero feminina, sendo diagnosticada com transtorno de identidade de gênero ou disforia de gênero. A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do EREsp 1886929, conforme o Informativo 740, de 13/06/2022, por maioria, estabeleceu a tese da taxatividade do rol da ANS em regra, ressalvando que em situações excepcionais os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica sem substituto terapêutico no rol e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor. Naquele julgamento foi asseverado que em diversas situações é possível ao Judiciário determinar que o plano garanta ao beneficiário a cobertura de procedimento não previsto pela agência reguladora, a depender de critérios técnicos e da demonstração da necessidade e da pertinência do tratamento. Além disso, recente alteração no artigo 10, §§12 e 13, da Lei 9.656/1998, passou a prever que o rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar atualizado pela ANS a cada nova incorporação constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde, flexibilizando a taxatividade do rol de procedimentos da ANS. Prevê o artigo 10, §13, da Lei 9.656/1998, que em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que: I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais. Ressalte-se que a cirurgia de transgenitalização foi inserida no âmbito do Sistema Único de Saúde pela Portaria GM/MS 2803/2013, que redefine e amplia o Processo Transexualizador no SUS. Posteriormente, o CONITEC, através do Relatório Técnico 69/2014 e da Portaria 11/2014, incorporou os procedimentos relativos ao processo transexualizador no Sistema Único de Saúde. Parecer da ANS 26/GEAS/GGRAS/DIPRO/2021, reconhece que embora o processo transexualizador ou de afirmação de gênero não esteja listado na RN 465/2021, os beneficiários transgênero ou com incongruência de gênero, com diagnóstico de transtornos da identidade sexual (CID10 F.64) terão assegurada a cobertura de alguns dos procedimentos que se encontram listados no rol vigente e não possuem diretriz de utilização, uma vez indicados pelo seu médico assistente. Intervenção cirúrgica que não é meramente estética, como alegado, mas parte integrante do tratamento médico que constitui importante meio de preservação da saúde física e mental da pessoa transexual, diante da realidade de um contexto social em que a transexualidade é marginalizada, estigmatizada e expõe a pessoa trans a atos de violência física e moral. Observância dos Princípios de Yogyakarta, que exprimem postulados sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero, dentre eles o princípio 17, que estabelece o direito ao padrão mais alto alcançável de saúde. O fato de os procedimentos solicitados isoladamente estarem previstos como de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde, de acordo com o rol de procedimentos da Resolução Normativa 387/15, vigente à época do requerimento, mas não constar do mesmo rol a indicação feita pelo médico assistente, de transgenitalização, não é suficiente para excluir a cobertura quanto aos procedimentos, considerando que o rol de procedimentos é apenas referência básica, sendo tais procedimentos de cobertura obrigatória quando solicitados pelo médico assistente, ainda que no âmbito do processo transexualizador, nos termos do Parecer das ANS já referido e do enunciado sumular 211, deste Tribunal. A injustificada recusa do plano de saúde de cobertura do procedimento necessário ao tratamento da segurada gera dano moral porque tal abusividade contra pessoa que necessita de cirurgia para complementar o tratamento de redesignação sexual, iniciada com o tratamento hormonal, causa abalo aos direitos da personalidade. O valor arbitrado a título de compensação pelo dano moral fixado, R$5.000,00 (cinco mil reais), encontra-se em consonância com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, atendendo, ainda, aos aspectos punitivos e pedagógicos necessários a repelir e evitar tais práticas lesivas aos consumidores. Recurso CONHECIDO e DESPROVIDO.
0006037-94.2017.8.19.0211 - APELAÇÃO - OITAVA CÂMARA CÍVEL - Des(a). CEZAR AUGUSTO RODRIGUES COSTA - Julg: 23/05/2023 - Data de Publicação: 31/05/2023
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